Revista de Educación Religiosa, volumen III, nº 1, 2024
DOI 10.38123/rer.v3i1.430
Sueli da Cruz Pereira1
irscruz@yahoo.com.br
Sociedade Brasileira de Catequetas e do Grupo de Reflexão Bíblico-Catequética da CNBB, Brasil
Resumo
O anúncio de Jesus Cristo é desde o princípio da Igreja sua missão fundamental. O presente artigo intenciona apresentar a importância do papel do(a) catequista nesse anúncio e em seu aprofundamento, devido à sua missão específica. Porém, a pergunta que nos orienta é se “o como” o anúncio e seu aprofundamento são desenvolvidos pode contribuir para uma evangelização superficial ou deficiente a ponto de dificultar uma autêntica formação de discípulos missionários. Para que isto não aconteça supomos ser necessário que na formação de catequistas seja desenvolvido um aprofundamento de forma coerente com os ensinamentos da Igreja a partir de suas fontes, em uma formação cristológica básica, de modo que sejam ressaltados os elementos do conteúdo do querigma (encarnação, vida, morte e ressurreição) em sua inter-relação e complementariedade. O objetivo desse aprofundamento é ajudar os(as) catequistas a extrair do conteúdo o elemento central na vida de Jesus, que é o seu amor ilimitado e gratuito, que foi capaz de dar a vida para a nossa salvação, e assim, fazer com que as pessoas possam experimentá-lo e viver como ele.
Palavras-chave: anúncio, querigma, missão, salvação, catequista
Abstract
The announcement of Jesus Christ has been the fundamental mission of the Church since the beginning. This article aims to present the importance of the catechist's role in this proclamation and in deepening it, due to their specific mission. However, the question that guides us is whether "how" the proclamation and its deepening are developed can contribute to a superficial or deficient evangelization to the point of hindering an authentic formation of missionary disciples. In order to prevent this from happening, we believe it is necessary for the formation of catechists to develop an in-depth study that is consistent with the teachings of the Church from its sources, in a basic Christological formation, so that the elements of the content of the kerygma (incarnation, life, death and resurrection) are emphasized, in their interrelation and complementarity. The aim of this study is to help catechists to extract from the content the central element in the life of Jesus, which is his unlimited and gratuitous love, which was able to give his life for our salvation, and thus make it possible for people to experience him and live like him.
Keywords: announcement, kerygma, mission, salvation, catechist
Resumen
La misión fundamental de la Iglesia desde sus inicios ha sido anunciar a Jesucristo. Este artículo pretende presentar la importancia del papel del catequista en este anuncio y en su profundización, dada su misión específica. Sin embargo, la pregunta que nos orienta es “cómo” se desarrolla el anuncio y su profundización puede contribuir a una evangelización superficial o deficiente hasta el punto de dificultar la auténtica formación de los discípulos misioneros. Para evitar que esto suceda, asumimos que es necesario que en la formación de los catequistas se desarrolle un estudio profundo de manera coherente con las enseñanzas de la Iglesia desde sus fuentes, en una formación cristológica básica, de modo que los elementos del contenido del kerygma (encarnación, vida, muerte y resurrección) en su interrelación y complementariedad. El objetivo de este estudio es ayudar a los catequistas a extraer del contenido el elemento central de la vida de Jesús, que es su amor ilimitado y gratuito, que fue capaz de dar su vida por nuestra salvación, y así hacer posible que la gente lo experimente y viva como él.
Palabras clave: anuncio, kerigma, misión, salvación, catequista
Os atuais documentos da Igreja vêm ressaltando a importância do querigma, isto é, do primeiro anúncio sobre Jesus Cristo, e também de seu aprofundamento, a serem realizados de modo particular pelos(as) catequistas, devido ao ministério laical que lhes é próprio. Visto que é intrínseca à missão dos(as) catequistas a realização do anúncio e o aprofundamento do seu conteúdo, para realizar essa missão é necessário que tenham uma formação básica, a qual sabemos que é oferecida em diversos lugares, mas nem sempre é acolhida por alguns por diversos motivos.
O resultado da missão é explicito diante de um cenário de inúmeros cristãos, pois se confirma que o anúncio de Jesus Cristo vem sendo realizado ao longo dos séculos. Porém, também nos deparamos com um grande número de cristãos sem vivência cristã ou cristãos com uma vivência dualista. Aqui se encontra a nossa hipótese: o “como” o anúncio e seu aprofundamento são realizados faz gerar a forma, o modo de ser cristão. Se assim for, será de suma importância que os(as) catequistas sejam orientados para uma formação cristológica básica, que os conduza para uma visão integral da vida de Cristo, onde não seja ressaltado apenas um dos elementos de seu mistério em detrimento de outros.
Acreditamos que uma visão integral, que compreenda a inter-relação encarnação, vida, morte e ressureição de Jesus como revelação do amor de Deus que pode ser experimentado através de Jesus, seja capaz de proporcionar a formação de discípulos missionários, que correspondam a esse amor, fazendo da própria vida um reflexo da vida de Jesus.
A missão essencial da Igreja é evangelizar (Evangelii nuntiandi, #14). Papa Francisco afirma que “em virtude do Batismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28:19). Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização” (Evangelii gaudium, #120), que pode ser realizada através do testemunho, do anúncio e do serviço, conferidos pela participação no tríplice múnus de Cristo, tão ressaltada na Lumen gentium:
A participação no tríplice múnus de Cristo ―sacerdotal, profético e régio― é concedida a todos (cf. LG, n. 10-12). Tal participação se fundamenta nos sacramentos da iniciação cristã (Batismo, Confirmação e Eucaristia) e nas virtudes teologais (fé, esperança e caridade). Sobre essa base comum, uma riqueza inesgotável de carismas (cf. LG, n. 4,7,12,13,32) é concedida gratuitamente por Deus para a edificação da Igreja, para a santificação dos fiéis, para a propagação do Evangelho e para a transformação do mundo na perspectiva do Reino de Deus. (Ferreira, 2022, p. 49)
Dentre os membros do povo de Deus, destacamos aqui a figura do(a) catequista leigo que está a serviço da Iniciação à Vida Cristã (IVC), cuja missão enquadra-se principalmente na dimensão do anúncio. Sua missão específica na Igreja é “fazer ecoar a Palavra de Deus”, isto é, transmitir à viva voz a Palavra de Deus, “o Verbo, que se fez carne e habitou entre nós” (cf. Jo 1:14). Em outras palavras, sua missão é anunciar quem é Jesus Cristo. Com isso,
o catequista da iniciação à vida cristã é alguém que se sentiu chamado por Deus e fez a experiência do encontro com Jesus Cristo e se tornou discípulo, pois “este ministério possui um forte valor vocacional” (AM 8). É uma pessoa que testemunha sua fé na comunidade eclesial missionária e se deixa guiar pelo Espírito Santo. Foi chamado por Deus com a missão de transmitir a fé crista para outras pessoas. A partir do momento que se sente chamado a catequizar, inicia um caminho formativo como discípulo missionário de Jesus Cristo. (Santos, 2022, p. 76)
Visto que evangelizar não é, primeiramente, transmitir uma doutrina, mas é antes tornar Jesus presente e anunciá-lo (Diretório para a Catequese 2020, #29), a missão do(a) catequista segue essa orientação, pois é essa sua missão específica desde os primeiros séculos da Igreja, e que destaca-se de modo particular no catecumenato. Seguindo um caminho gradual, com momentos formativos e celebrativos, o catecumenato era a forma catequética para os que queriam aderir a Jesus Cristo ao ouvir o primeiro anúncio sobre ele. Nos documentos atuais referentes à catequese, destaca-se o resgate do catecumenato e sua aplicação hoje como modelo inspirador de toda a catequese, a partir de seus elementos.
O elemento primordial do catecumenato primitivo é a centralidade em Jesus Cristo. O anúncio de Jesus era realizado pelos membros da Igreja e o conteúdo desse mesmo anúncio era aprofundado pelos catequistas (leigos ou não) durante um longo período. Com o resgate do catecumenato a partir do Concílio Vaticano II, os documentos da Igreja nos orientam à vivência de uma inspiração catecumenal nos processos de IVC. Aqui é ressaltada a importância do primeiro anúncio, isto é, do querigma2, cujo conteúdo deve estar sempre na boca do catequista: “Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar” (EG, #164).
O primeiro anúncio, ou querigma, realizado pelo(a) catequista (ou por outros membros do povo de Deus) deve levar as pessoas a fazer uma experiência de encontro com Jesus Cristo, para que possam chegar a uma adesão a ele. “A catequese querigmática, como ação missionária da Igreja, está destinada a todas as pessoas que não conhecem Jesus ou a quem ainda precisa daquele primeiro anúncio dentro da Igreja” (Martins e Ramírez, 2022, p. 209).
Assim, esse anúncio não é “primeiro” apenas em sentido cronológico, pois pode ser repetido quantas vezes forem necessárias até alcançar o objetivo de proporcionar a adesão a Jesus. Em nossa realidade latino-americana, muitos já receberam cronologicamente o primeiro anúncio, mas necessitam de um aprofundamento do seu conteúdo para conhecer e seguir os passos de Cristo, a quem aderiram. Segundo Biemmi (2013), esse segundo anúncio se torna essencial, visto que nele há a proposta de reavivar a fé das pessoas que apesar de terem sido iniciadas não conhecem suficientemente o cristianismo e a Igreja.
Após aderir a Jesus, quem deseja continuar o processo, passa por um caminho de aprofundamento de quem é Jesus, o nosso Salvador. Dessa forma “ao designar-se como ‘primeiro’ este anúncio, não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros conteúdos que o superam” (EG, #164), e assim, ele se relaciona aos demais conteúdos, sendo o ponto de partida e o ponto de chegada dos conteúdos a serem aprofundados. A relação entre primeiro anúncio e seu aprofundamento (catequese) é sublinhada no Diretório para a Catequese de 2020, que
por um lado, ratifica a distinção e a complementariedade entre os dois (cf. EC 69) e, ao mesmo tempo, aponta que eles nem sempre podem ser distinguidos porque a catequese também busca anunciar a fé (cf. DC 57), mostrar sua beleza e credibilidade. O anúncio querigmático permeia a catequese tornando-a querigmática. (Martins e Ramírez, 2022, p. 217)
Diante da missão específica do(a) catequista, que é anunciar Jesus Cristo, nos inquietam os inúmeros impasses e desafios que dificultam e contribuem para uma evangelização superficial ou deficiente que não conduz à formação de discípulos missionários. Um dos principais desafios é formar os catequistas para essa compreensão da importância do anúncio querigmático como ponto de partida e como fio condutor, como também um aprofundamento básico do seu conteúdo. Embora essa orientação esteja presente nos documentos da Igreja, ainda nos deparamos, em diversas localidades3, com modelos catequéticos “conteudistas”, preocupados na transmissão da doutrina, sem antes levar as pessoas a fazerem a experiência de encontro com Cristo.
No Seminário de Presbíteros realizado no Brasil em 2023, foram destacados outros impasses que emergem dessa deficiência na formação dos(as) catequistas tais como: a) a “compreensão individual” de quem é Jesus por parte de quem o anuncia, desvinculada das afirmações cristológicas da fé da Igreja; b) o primeiro anúncio e o aprofundamento do mesmo, dependendo de quem os realizam, podem ser feitos com muita “boa vontade”, mas sem ressaltar uma visão integral de Cristo, visto que um autêntico seguimento a Cristo está interligado à compreensão de quem ele é4.
O anúncio de apenas um dos aspectos da vida de Jesus Cristo acentuado em detrimento de outros como, por exemplo, um Cristo sem cruz, apenas glorioso e vitorioso, pode levar a um seguimento a Jesus que rejeita o sofrimento e não reconhece os sofredores. Assim como um anúncio apenas do Cristo crucificado, sem a ressurreição, pode levar a uma exaltação do sofrimento. Para que na missão de anunciar Jesus Cristo haja uma integração de todo o conteúdo presente no querigma, é preciso que a formação de catequistas considere a importância do aprofundamento de alguns elementos primordiais da cristologia neotestamentária e seu desdobramento na Tradição e no Magistério da Igreja.
O querigma primitivo, isto é, o querigma presente nos textos neotestamentários, é “a expressão de uma fé pós-pascal que integra o Jesus pré-pascal com o Cristo ressuscitado. À luz da cruz e da ressurreição ele retoma a memória de Jesus. O querigma não é a simples repetição de um fato ou um simples discurso, mas o tornar vivo e presente Jesus na pessoa que fala e na pessoa que escuta” (Pereira, 2021, p. 22). Ele é descrito de diversos modos e de acordo com a visão de cada autor bíblico. Embora haja diferenças nas perspectivas teológicas e na percepção dos autores (o que não temos a pretensão de delinear aqui), queremos enfatizar a inter-relação e a complementariedade entre os elementos do conteúdo do anúncio querigmático nos escritos do Novo Testamento. Cada escrito apresenta uma cristologia com enfoques distintos do mistério de Jesus Cristo, como também destaca o ponto de partida da reflexão cristológica, que pode ser “do alto” (descendente) ou “do baixo” (ascendente).
Não se trata aqui de escolher uma cristologia melhor, mas compreender que o objetivo delas é apresentar quem é Jesus a partir de um dos elementos do seu mistério, isto é, de sua encarnação-vida-morte-ressurreição. Nosso objetivo é demonstrar que embora haja diversos pontos de partida para a apresentação de quem é Jesus, é necessário interligar os elementos do mistério de Cristo para que seja compreensível o mistério da salvação que dele advém.
Como uma colcha de retalhos, a cristologia neotestamentária nos apresenta diversos fragmentos que formam uma única peça. Desse modo, um olhar para esses diversos fragmentos nos ajuda a perceber que embora existam, eles se relacionam e se comunicam para ter sua utilidade como colcha. Assim, também cada autor tem um ponto de partida, mas o objetivo é apresentar quem é Cristo. O impasse atual está em visões unilaterais ou fundamentalistas que não conseguem ver a profunda relação entre os elementos do mistério de Cristo, ressaltando um em detrimento dos outros.
Voltemos ao querigma primitivo. Um dos textos que sintetizam o conteúdo do querigma é 1Cor 15:3-5, no qual é apresentado os seguintes elementos: a vinda de Cristo, a morte, a sepultura, a ressurreição e as aparições de Jesus. Segundo Dodd (2000), eles aparecem na seguinte estrutura: a) as profecias se tornaram verdade e a nova era teve início com a vinda de Cristo; b) ele nasceu da estirpe de Davi; c) morreu segundo as escrituras para libertar-nos do mal da era presente; d) foi sepultado; e) ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras; f) é exaltado à direita de Deus, como Filho de Deus e Senhor dos vivos e dos mortos; g) virá de novo como juiz e salvador da humanidade.
Partindo de uma cristologia do alto para o baixo (descendente), da preexistência divina de Jesus para a sua encarnação a partir das profecias, Paulo apresenta em 1Cor 15:3-5 a morte e a ressurreição de Jesus como um desígnio divino, sublinhando o valor salvífico da morte de Jesus. Na morte e na ressurreição de Jesus, eixos do mistério pascal, realiza-se o projeto salvífico de Deus, já iniciado na vinda de Cristo.
O conteúdo do querigma, isto é, o anúncio da vida, da morte e da ressurreição de Jesus, presente no capítulo 15, é acentuado em diversos capítulos da Primeira carta aos Coríntios. Paulo coloca em relevo já no primeiro capítulo um dos elementos do querigma que é a morte de cruz de Jesus: “anunciamos Cristo crucificado” (1Cor 1:23). Ele parte do Cristo Crucificado para apresentar o Mistério de Cristo. A cruz é acentuada porque através do seu sentido
Paulo apresenta aos coríntios o significado soteriológico, teológico e paradigmático da cruz, pois ela é a fonte da salvação e, ao mesmo tempo, faz com que a comunidade confronte com a entrega de Cristo na cruz as suas vivências problemáticas de liderança e divisão interna da comunidade (1Cor 1,10-11), como também os ciúmes e os problemas familiares, doutrinários, sociais e morais. Somente a cruz de Cristo é capaz de dar respostas para tais questões. (Pereira, 2021, p. 24)
A cruz é apresentada por Paulo a partir de uma leitura metafórica para explicar um evento de salvação, e este deve iluminar os passos da comunidade de Corinto. Assim o destaque dado à cruz é o ponto de partida para um chamado à conversão para acolher a salvação realizada a partir dela. A leitura desse texto para o momento atual nos ajuda a perceber que podemos ter como ponto de partida do anúncio a cruz para apresentar o mistério de salvação, que está interligado à vida doada de Cristo por amor ao ser humano. E este elemento, a cruz, não pode ser deixado de lado no anúncio como se fosse um elemento negativo por ser difícil aceitar o sofrimento na vida.
Em outros escritos paulinos encontramos também hinos cristológicos que apresentam aspectos e elementos do mistério de Cristo. Eles se encontram em Fl 2:6-11; Cl 1:15-20 e Ef 1:3-14. Também não temos aqui a pretensão de examinar cada um deles, mas apenas apresentar o seu conteúdo principal.
Em Fl 2:6-11 a reflexão cristológica apresenta Jesus como “Senhor”. O querigma presente nele tem o evento pascal como expressão da compreensão do caminho de salvação realizado por Cristo. A reflexão parte do alto, da preexistência divina de Jesus. Do alto para o baixo e novamente para o alto, o hino apresenta um movimento de descida e de subida, onde ocorre o esvaziamento, a kenosis. Jesus tendo igualdade com Deus a partir de sua condição divina não se apega a ela, se humilha livremente ao assumir a natureza humana, deixando as prerrogativas de sua preexistência para adentrar em nossa humanidade. O movimento de descida não termina na encarnação, mas vai além, pois termina na cruz, o mais baixo degrau da condição humana, passando da condição divina ao “maldito” pendurado na cruz. Mas para cada degrau de descida há um degrau de subida que Deus lhe proporciona. Daqui podemos haurir que o preço de uma vida encarnada e doada foi a perseguição e a morte. Mas por sua obediência ao Pai, Jesus não fica entregue a morte, pois Deus o ressuscita e o eleva para junto de si no lugar mais alto que existe. Os seres humanos trataram Jesus como um maldito e Deus o trata como Senhor.
O hino presente em Cl 1:15-20 também parte de uma cristologia do alto, onde Jesus é reconhecido como Deus antes de sua encarnação, pois já preexistia. Assim, preexistência e encarnação são pressupostos teológicos comuns ao hino de Fl 2:6-11. Destaca-se no hino o primado de Cristo na obra da criação e da redenção, pois é apresentado como o princípio da criação e que já preexistia antes de tudo ser criado. Desse modo não é uma criatura ou a primeira das criaturas, mas através dele é realizada a criação e ele é o administrador de todo o universo, que levará tudo ao Pai.
Já Ef 3:1-14 é um hino de louvor a Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que por meio de seu Filho nos abençoou, nos escolheu e nos predestinou para sermos filhos. Jesus é a graça de Deus dada à humanidade. Através dele fomos abençoados e salvos, assim a centralidade do hino é o projeto salvífico de Deus revelado e realizado em Jesus.
Passemos brevemente ao conteúdo do querigma presente nos Evangelhos sinóticos (Pereira, 2019). Como já afirmamos anteriormente, também cada Evangelho apresenta uma cristologia com pressupostos e perspectivas distintas. Nos sinóticos, há o desenvolvimento de uma cristologia que dá um sentido à morte de Jesus a partir de sua vida doada por amor e pelo desígnio de Deus para a salvação do ser humano.
No Evangelho de Marcos destaca-se o caráter catequético, pois quer ensinar quem é Jesus e como deve ser seus discípulos. A pergunta principal é “quem é Jesus?”. Essa pergunta está relacionada ao segredo messiânico, pois muitos tentaram responder e responderam de forma errada. É no capítulo 8 que uma aparece uma resposta correta, mesmo que sem muita clareza por parte de Pedro que afirma: “Tu és o Messias” (8:29). Porém esse segredo só pode ser compreendido por quem tem fé e acolhe a cruz. Encontramos ao longo do Evangelho outros títulos atribuídos a Jesus que o revelam: Cristo (Mc 1:1; 1:41; 9:29), Filho do Homem (Mc 8:31,38; 9:9) e Filho de Deus (Mc 1:1; 1:11; 8:38; 9:7; 15; 39). Por trás desses títulos é possível uma compreensão da missão salvífica de Jesus. Essa compreensão conduzirá os discípulos de Jesus a fazerem uma experiência de encontro com Cristo que dá sentido à vida.
Em Mateus também encontramos alguns títulos atribuídos a Jesus que o revelam: Messias (1:1-17); Emanuel, Deus conosco (1:18 - 2:12); Filho de Davi (1:1). Já no capítulo 2 subentende-se que Jesus é apresentado como o Novo Moisés (2:13-23). Em Jesus se cumprem as promessas das Escrituras e por isso é reconhecido como o Salvador, o Messias prometido.
No Evangelho de Lucas, Jesus aparece como o centro da história da salvação. Alguns títulos são atribuídos a Jesus: Filho do Altíssimo (1:32), Filho de Deus (8:22) Cristo (2:11), Salvador (2:11), profeta (13:34). Jesus aparece como aquele que “iniciou a abertura aos pagãos; acolheu os pobres, as mulheres e todos os excluídos; agia com misericórdia; a oração era sua companheira inseparável; a alegria fazia parte do Reino que anunciava; o Espírito Santo estava presente em toda a sua vida” (Pereira, 2019, p. 88-89).
Diferentemente dos sinóticos, o Evangelho de João apresenta Jesus a partir de sua preexistência, da eternidade do Verbo. Está no prólogo (Jo 1:1-18) essa afirmação cristológica: Jesus existe desde sempre e sempre esteve com o Pai. Ele é o Verbo, o Logos, a Palavra, é Deus desde sempre. A expressão “Eu sou” o apresenta como Deus, assim como Deus também foi apresentado a Moisés. Ela aparece sete vezes no Evangelho: 1) Eu sou o Pão da Vida (6:36,41,48,51); 2) Eu sou a Luz do mundo (8:12; 9:5); 3) Eu sou a Porta (10:7,9,11,14); 4) Eu sou o Bom Pastor (10:11.,14); 5) Eu sou a Ressurreição e a Vida (11,:25); 6) Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (14:6); 7) Eu sou a Videira Verdadeira (15.1.,5). Em todo o Evangelho destaca-se além da sua preexistência, sua existência terrena, sua glorificação-exaltação e sua dimensão escatológica.
Como vimos, o querigma neotestamentário tem um núcleo comum, apesar de ser apresentado de diversas formas. Ao longo da história da Igreja esse núcleo comum vem sendo anunciado e aprofundado, de modo particular nos primeiros Concílios, onde foram formulados os dogmas cristológicos.
Em relação ao querigma, Papa Francisco afirma que “na boca do catequista, volta a ressoar sempre o primeiro anúncio: ‘Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar’” (EG, #164). Por trás dessa afirmação estão presentes os elementos do conteúdo do querigma (a vida, a morte e a ressurreição de Jesus) de uma forma profunda e próxima à pessoa que escuta. É uma afirmação que leva a uma experiência de encontro com Cristo, a partir de uma visão integrada de todos os elementos, e integradora porque é capaz de levar a pessoa a dar sentido a própria vida a partir desse encontro com alguém que o ama gratuitamente.
Partindo do princípio que a forma como anunciamos Cristo é fruto da compreensão que dele temos, torna-se maior a necessidade de uma visão integrada dos elementos do mistério de Cristo presentes no querigma a partir de uma formação adequada. A inter-relação encarnação-vida-morte-ressurreição ajuda-nos a compreender quem é Jesus e o mistério salvífico que dele provém. Na afirmação de Papa Francisco, que vimos acima, salta aos olhos o destaque dado ao amor de Jesus que foi capaz de dar a vida para nos salvar e que continua a caminhar conosco. A salvação é fruto do amor de Deus pelos seres humanos. Um amor que está presente em todos os momentos da vida de Jesus para a nossa salvação.
No conteúdo do querigma, a revelação do amor de Deus começa com a encarnação. Deus não nos deu algo, pois nos deu seu próprio Filho. Através da encarnação Jesus assume a nossa humanidade. Só alguém que ama é capaz de esvaziar-se para assumir outra natureza, e unindo-a a si. No versículo “o Verbo se fez carne” (Jo 1:14) está a indicação de que Jesus assumiu o ser humano em sua integridade, o ser humano todo. Ao assumir-nos, Jesus nos comunica a sua própria vida e o faz de modo humilde, vindo como um menino em suas fragilidades e não como um rei todo poderoso. A encarnação é uma ação de Deus na história que nos mostra o amor real de Deus. Não é um amor que fica nas palavras ou nas ideias, mas é experimentável.
A primeira consequência da encarnação de Jesus foi viver como um ser humano, exceto no pecado. Sua vida está a serviço do Reino do Pai. Jesus anuncia um Reino onde os marginalizados, os excluídos, os pobres, as mulheres, as crianças tinham prioridade. Em defesa do Reino do Pai, Jesus questionou os que utilizavam do poder religioso colocando a interpretação deles da Lei acima da vida, visto que a Lei era para garanti-la. Jesus se doou por amor, e de modo particular para que todos tivessem vida, principalmente os excluídos de sua sociedade devido à interpretação da Lei. Diversas cenas dos Evangelhos apresentam Jesus em confronto com as autoridades religiosas, que temiam que Jesus pudesse provocar algo que interferisse no poder delas.
Doar-se por amor não deveria ser motivo de condenação à morte. Jesus foi condenado à morte mais cruel e violenta de sua época, a qual somente os malfeitores e subversivos que cometiam crimes como assassínio, furto grave, traição ou rebelião eram submetidos. Mas “por que matam Jesus?”. A resposta a essa pergunta conduze-nos ao sentido histórico de sua morte. Jesus incomodou com sua vida, suas palavras, seus gestos, o poder vigente. “É sua vida que dá sentido último a sua morte” (Ellacuría, 1990, p. 200). Porém, após a morte de Jesus, os seguidores de Cristo, além de apresentar o sentido histórico nos Evangelhos, ressaltam o sentido teológico da morte dele em diversos escritos do NT, na busca de responder “por que Jesus morreu?”. Eles viram nas Escrituras a morte de Jesus como “plano salvífico de Deus” (Schillebeeckx, 2008, p. 276). Pela cruz, Cristo nos salvou do pecado, por isso ela foi necessária, segundo o Novo Testamento.
Quando no anúncio de Cristo o sentido histórico ou o sentido teológico de sua morte são desconectados, corre-se o risco de desviar o sentido originário da cruz de Jesus, levando a uma forma de seguimento que polariza as dimensões social, política, econômica ou religiosa. Por um lado podem ser valorizadas as lutas sociais, o engajamento político... sem uma espiritualidade que alimenta o sentido de dar a vida assim como Jesus o fez. Por outro, pode-se cair num devocionismo, num dolorismo, por se acreditar que os sofrimentos são desígnio de Deus. O sentido histórico e o teológico são complementares e nos orientam a como carregar nossas cruzes de cada dia e como ajudar os nossos irmãos e irmãs sofredores a “descer da cruz”.
Jesus foi obediente ao Pai, viveu em prol dos outros e do Reino do Pai, até o ponto de chegar a ser condenado à morte. Mas o Pai não o deixa entregue à morte, ressuscitando-o. Para Deus a morte não tem a última palavra, pois com a ressurreição o Pai demonstra a aprovação e a plenificação da vida de Jesus. Assim como Jesus ressuscitou, cremos que também nós ressuscitaremos. E esta esperança nos incentiva a viver já neste mundo como ressuscitados, em uma vida plena que deve começar aqui e agora, no Reino anunciado por Jesus.
A orientação da vida do discípulo missionário deve ser espelhada em toda a vida de Jesus, por isso o aprofundamento dos elementos do querigma nos conduz para um seguimento a Jesus conforme sua vida e seus ensinamentos. O(a) catequista é chamado a anunciar com palavras e a testemunhar o que anuncia, assim como Jesus o fez:
o Filho dá testemunho do Pai e do Espírito, enquanto o Pai e o Espírito dão testemunho do Filho. A Igreja, por sua vez, dá testemunho do que vê e ouve do Verbo da Vida. Mas seu testemunho não é comunicação de um conjunto de doutrinas e/ou ideologias, mas é a proclamação da salvação prometida, e uma vez por todas, realizada para todas as mulheres e homens. (Moraes, 2022, p. 33)
A inter-relação encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus revela-nos um grande mistério de amor trinitário, sem limites e gratuito, pois o Pai nos envia o Filho, pela ação do Espírito Santo, porque nos ama e quer o melhor para nós, pois “Aquele que não poupou o próprio Filho, como não nos dará também todas as coisas?” (Rm 8:32). Assim, essa inter-relação nos convida a ter os mesmos sentimentos de Cristo (cf. Fl 2:5), assumindo nossa história, nossa condição humana, nossas cruzes e vitórias, numa resposta amorosa ao amor de Deus e na relação de amor aos irmãos e irmãs. E este é o autêntico testemunho que o mundo precisa.
Como vimos, a missão do(a) catequista é de suma importância para a vida da Igreja, pois é também através dela que o conteúdo do anúncio de Jesus Cristo será aprofundado de maneira sistemática e gradual por aqueles que acolheram o primeiro anúncio e desejam conhecer melhor a Jesus. Para que esta missão seja desenvolvida de forma eficaz, além do testemunho, é necessário que o(a) catequista tenha percorrido uma devida formação básica, que o ajude a transmitir o conteúdo do anúncio querigmático de forma integral e integradora. Tentamos demostrar ao longo do percurso que quando isto não ocorre as consequências são desafiadoras, pois o “como” o anúncio e seu aprofundamento são realizados faz gerar a forma, o modo de ser cristão.
Quando o aprofundamento do querigma é realizado a partir de uma ótica pessoal, desvinculada da fé da Igreja, ou a partir de uma visão unilateral, há o risco de uma assimilação desvirtuada do conteúdo, que pode conduzir a uma prática incoerente com aquela proposta no Evangelho. Dessa forma, podemos verificar que nossa hipótese inicial faz sentido, pois dependendo da forma como se apresenta Cristo, será a recepção e a compreensão de quem ele é. E isso se torna fatal quando o anúncio e seu aprofundamento são realizados de forma desconectada, visto que a adesão a Jesus e ao seu projeto está condicionada à recepção do querigma, e o modo de viver a fé cristã está condicionado à assimilação do conteúdo transmitido.
Na formação de catequistas alguns aspectos cristológicos devem ganhar relevo para um aprofundamento, e de modo particular os elementos do conteúdo do querigma. Encarnação, vida, morte e ressureição são elementos inter-relacionais e complementares que exprimem a gratuidade do amor de Deus que se doa por amor aos seres humanos. Quem experimenta ser amado corresponde ao amor. Os discípulos missionários de Jesus são aqueles que fazem essa experiência de encontro com ele e são transformados por experimentar o seu amor a ponto de se identificarem com ele. Os(as) catequistas, discípulos(as) missionários(as) são chamados a conduzir outros a fazerem essa experiência.
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