Revista de Educación Religiosa, volumen 2, nº 7, 2023, DOI 10.38123/rer.v2i7.310

A unidade dos sacramentos de iniciação à vida cristã: caminho para uma catequese mistagógica hoje

Elza Ferreira Cruz1
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Introdução

O Concílio Vaticano II retoma o catecumenato e nos leva a repensar o sentido de unidade da Iniciação à Vida Cristã a partir dos sacramentos. A afirmação do Papa Bento XVI, no documento Sacramentum Caritatis, sobre a necessidade de uma melhor compreensão pastoral do sentido unitário dos sacramentos de Iniciação à Vida Cristã, - a fim de se perceber a centralidade da eucaristia na vida cristã,- evidencia o quanto que a unidade dos sacramentos de IVC2 é de fundamental importância para a tarefa evangelizadora da Igreja. O Magistério de Francisco, em sintonia com a pastoral catequética, nos coloca de maneira clara a caminho de uma renovação catequética: uma catequese querigmático-mistagógica que forme o ser humano de uma maneira integral. A catequese mistagógica, como experiência de condução ao mistério do amor de Deus, por meio de um exercício de desvelamento do sentido pleno dos sacramentos de Iniciação à Vida Cristã, pode desenvolver-se de maneira mais plena a partir de um sentido que revele a relação entre batismo, crisma e eucaristia não mais de forma fragmentada. Existe um sentido teológico-pastoral que fica obscurecido na percepção fragmentária dos três sacramentos de IVC. Resgatar esse sentido é uma tarefa pastoral importante hoje para vislumbrar caminhos para uma Igreja que se quer mais sinodal, ou seja, que caminhe como povo de Deus na comunhão fraterna.

1. A inspiração catecumenal como eixo orientador da IVC

A partir da inspiração catecumenal, a catequese amplia seu espaço de atuação a fim de responder às exigências de um mundo contemporâneo cheio de contradições, que não vive mais a cristandade, e se põe a serviço da Iniciação à Vida Cristã na tarefa de formar discípulos missionários:

Aquilo que hoje tradicionalmente denominamos “Catequese”, deve ser conduzido conforme o processo de iniciação, muito mais exigente e comprometedor; não pode reduzir-se apenas à preparação para os Sacramentos, que infelizmente, em nossa realidade, tornam-se com frequência em sacramentos de finalização. (...) Recebe-se o Sacramento, mas a pessoa não é iniciada plenamente na fé.” (Lima, 2018, p. 36)

A inspiração catecumenal é o eixo orientador do processo de IVC e nesse processo a catequese se alicerça nas dimensões querigmática e mistagógica, o que abre um caminho possibilitador de mudanças que gerem frutos. O retorno à inspiração catecumenal conduz a um aprofundamento da dimensão mística no processo de iniciação, pois ela se desenvolve em tempos ou etapas, entendidos como “portas”, que se abrem a cada momento dessa caminhada e a celebração dos sacramentos não é o final, mas o espaço-tempo “que se abre para a catequese mistagógica, que vai aprofundar a vivência do mistério” (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Doc 97, 74, 2009). Assim, há uma dinâmica mistagógica que perpassa todo o caminho da catequese, é um movimento que vai do querigma ao mistagógico e do mistagógico volta ao querigma. É o que Magistério de Francisco nos leva a refletir ao indicar a necessidade de uma catequese mais querigmática (Evangelii Gaudium, #164) e mistagógica: “a necessária progressividade de experiência formativa na qual intervém toda a comunidade e uma renovada valorização dos sinais litúrgicos da iniciação cristã” (EG, #166). A catequese mistagógica visa evidenciar a relação celebrar e viver a fim de superar um dualismo limitante que divide, que impede a vivência plena do cristianismo. Na verdade, é uma mudança de mentalidade que conduz o cristão a compreender a necessidade de viver da celebração (Boselli, 2017, p. 9) de viver do amor eucarístico celebrado.

Os primeiros cristãos possuíam uma maneira de iniciar na vida cristã em um itinerário, que unia a Palavra, a liturgia e a vida: era o catecumenato. Segundo Costa (2014):

O catecumenato primitivo estruturava-se levando em consideração o processo de iniciação à fé cristã em suas diversas etapas. A partir das fontes patrísticas podemos encontrar três etapas, antes e depois do Batismo: a preparação remota, a preparação próxima e a orientação mistagógica, após o Batismo. (p. 133)

Essa orientação mistagógica após o batismo era fundamental para se compreender o sentido pleno da celebração, que implicava uma transformação de vida, o objetivo era participar de uma comunidade, com uma vivência fraterna, uma vivência de mesa, de partilha. A orientação mistagógica completava o ciclo da iniciação através das catequeses ou homílias, que iluminadas pela Escritura, visavam conduzir os neófitos à compreensão dos mistérios vividos na celebração. “A mistagogia permitia a compreensão e a celebração dos mistérios da fé cristã com uma assimilação total que abarcava todas as dimensões da pessoa e reorientava seu plano de vida” (Costa, 2014, p. 113). Batizar-se não era apenas um rito ao final de curso, as catequeses não visavam simplesmente uma explicação racional sobre os sacramentos, e sim adentrar no mistério do amor de Deus.

Essa etapa mistagógica, aos poucos no desenrolar do catecumenato, vai se tornando um “eixo referencial para essa ação evangelizadora” (Costa, 2014, p. 136). A fase mistagógica se torna uma experiência constante de aprofundamento da fé que tem como fonte a iniciação cristã, mas que se estende por toda a caminhada. Os fiéis, na verdade, são sempre neófitos, no entender dos Padres, e crescem na fé através do diálogo e da vivência comunitária (Costa, 2014, p. 136). A comunidade é o espaço fundamental de crescimento da fé, pois batizar-se é tornar-se filho adotivo de Deus e participar de uma vida em comunhão, que é o sentido mais pleno da eucaristia.

Assim, a experiência catecumenal levava à descoberta da relação entre vida comunitária e existencial (lex orandi, lex credendi, lex vivendi), numa junção entre comunidade e vida, entre liturgia, sacramento e vida, rezar e viver da oração (Costa, 2014, p. 140). Marcada pela entrega e doação a Deus e ao próximo, como Jesus demonstrou, a vida cristã é vida eucarística, daí que a Iniciação à Vida Cristã tende para a eucaristia, por ser a própria maneira de ser Igreja. A experiência mistagógica, ou seja, a celebração e o aprofundamento do vivido na celebração tinham na sua base a unidade entre os sacramentos de IVC: Ao ser batizado o cristão se torna filho no Filho e é ungido para viver de maneira eucarística, na entrega a Deus e ao próximo, no cuidado, no amor, no perdão, na caridade, na busca pela justiça. O batismo tinha como fundamento principal renascer como filho de Deus e aprender a viver como filho de Deus: na obediência ao amor ofertado gratuitamente por Deus em Cristo na força do Espírito. Os tempos e as etapas do catecumenato, a celebração, as catequeses mistagógicas conduziam a esse sentido integrado, de aprofundar o batismo na vivência eucarística. Essa vivência se realiza no cultivo da comunidade, daí a força simbólica no itinerário da iniciação, que conduz à permanência na fé, na comunidade.

É evidente que no caminhar na história muitas mudanças ocorreram no processo de iniciar na vida cristã, que levaram a uma mentalidade fragmentária e individualista dos três sacramentos, perdendo-se o sentido eclesiológico da Iniciação à Vida Cristã. O resultado é que atualmente, após a celebração dos sacramentos, a maioria dos iniciados não retorna à Igreja, pois entendem que ‘receberam’ os sacramentos e não precisam participar da vida diária da comunidade. Esse senso de aprofundamento mistagógico se perdeu com o sentido de unidade. Quando nos debruçamos sobre os sacramentos de iniciação, batismo, eucaristia e crisma, observamos que os cristãos possuem uma maneira de perceber cada sacramento em si, como fases escolares. Após o batismo, as crianças se preparam para a primeira comunhão, a crisma fica para depois... Ocorreu uma ruptura na dinâmica da iniciação cristã, de maneira progressiva, que começa com o desfazimento do catecumenato, que vai dando lugar a uma preparação para o batismo, uma instrução para se aprender conteúdos da fé (Bollin e Gasparini, 1998, p. 65). O sentido de Iniciação à Vida Cristã vai se desfazendo numa atitude de batizar como obrigação social. A partir do momento que a sociedade se torna cristã, com a virada constantiniana, batizar se torna necessário, pois se toda a sociedade é cristã, o não-cristão fica em situação desfavorável. Forma-se uma mentalidade do batismo como necessário para a salvação da alma e, no Ocidente, com a ampliação do número de paróquias, o número insuficiente de bispos, a crisma vai sendo reservada para depois do batismo e da eucaristia. Além disso, o próprio sentido de sacramentos vai se modificando, a maneira patrística de compreender os sacramentos a partir da Escritura, como espaço de espiritualidade litúrgica, como realidade salvífica, se perde num abstracionismo, numa busca por definição que isola cada uma das partes, e levará a uma “individualização dos sacramentos” (Lafont, 2000, p. 96-97). A preocupação se volta para o efeito, para a eficácia, deixando de lado o experiencial simbólico dos sacramentos.

A fragmentação implica uma mentalidade individualista sobre os sacramentos da iniciação, deixando em segundo plano o sentido eclesiológico, pneumatológico, existencial, de cada sacramento: o batismo, a eucaristia, a crisma são mais percebidos como atos individuais ou costumes sociais, do que o pertencer a uma comunidade eclesial, ou como uma vivência transformadora da vida. O sentido de eucaristia se fixou na questão da presença real de Cristo na celebração, porém a compreensão do significado da presença de Cristo na vida de cada cristão, e a atitude que essa presença gera, ficou obscurecido. A percepção do batismo como um chamado, um compromisso, uma resposta a Deus, que se traduz na maneira de viver comunitária e existencial, fica em segundo plano. E a crisma ou confirmação é entendida como momento de ‘recebimento’ de dons individuais. No entanto, o principal problema que, a nosso ver, a fragmentação dos sacramentos da IVC traz, é o deslocamento, na percepção pastoral, do sentido pleno da eucaristia na vida cristã. Será que a maneira como iniciamos hoje não leva os fiéis a compreenderem que a iniciação está mais direcionada para a crisma, o sacramento da maturidade, do que para a eucaristia? O papa Bento XVI já observava a necessidade de repensarmos a questão da relação estreita entre os três sacramentos a fim de evidenciar que “somos baptizados e crismados em ordem à Eucaristia. Este dado implica o compromisso de favorecer na ação pastoral uma compreensão mais unitária do percurso da iniciação cristã” (Sacramentum Caritatis, #17).

Dessa maneira, a ‘inspiração catecumenal’ como eixo orientador do processo de iniciação pode renovar o agir catequético numa dinâmica querigmática e mistagógica, centrando-se na Escritura e na liturgia, nos sacramentos. Entendendo-se que a mistagogia é conjunto de experiências de fé e espiritualidade que fortalece sentimento e compromissos, envolvendo “a pessoa inteira, como indivíduo e como ser social, em seu espírito, em seu corpo, em seus sentimentos, em seu intelecto, em seu ser comunitário.” (CNBB, Doc 107, 104, 2017). A Iniciação à Vida Cristã a partir da inspiração catecumenal nos leva à necessidade de evidenciar o sentido unitário dos sacramentos de batismo, crisma e eucaristia.

2. A unidade dos sacramentos de IVC: do batismo à eucaristia

A Iniciação à Vida Cristã não pode ser reduzida a uma ação preparativa para uma celebração, a iniciação implica um mergulho na vida de Deus. As etapas, os ensinamentos, as celebrações devem conduzir a uma ação renovadora de vida, que gere frutos na existência pela graça de Deus. (CNBB, Doc 107, 78, 2017). A unidade é uma categoria teológica a partir da trinitariedade do Deus cristão: o projeto do Pai se realiza plenamente no Filho na força movente do Espírito Santo. Essa ação divina trina e unitária deve ser refletida na nossa vivência eclesial e os sacramentos da Iniciação à Vida Cristã expressam essa união trinitária, desenvolvem-se nessa graça de Deus:

A Iniciação à Vida Cristã é graça benevolente e transformadora que nos precede e nos cumula com os dons divinos do Pai, em Cristo, pelo Espírito. Ela se desenvolve dentro do dinamismo trinitário: os três sacramentos da iniciação, em uma unidade indissolúvel, expressam a unidade da obra trinitária na iniciação cristã: no Batismo assumimos a condição de filhos do Pai, a Crisma nos unge com a unção do Espírito e a Eucaristia nos alimenta com o próprio Cristo, o Filho. (CNBB, Doc 107, 91, 2017)

Os sacramentos de iniciação expressam a unidade trinitária salvífica, pois são três ações sacramentais que remetem diretamente à história da salvação: A filiação, a unção, a comunhão. Jesus era o Filho ungido que vivia na comunhão com o Pai no Espírito. A palavra comunhão é o centro da vida de Jesus Cristo, suas ações não são individuais, mas em concomitância com o Pai e o Espírito; em toda sua vida Jesus forma comunhão, com seus discípulos, com as pessoas de quem cuidou, curou, resgatou a dignidade; Jesus demonstra que o caminho para o Reino é a vida em comunhão, que nada mais é do que uma vida de entrega, de amor, de doação ao próximo e a Deus:

A origem dessa relação, entre os sacramentos da Iniciação à Vida Cristã está fundada nas diversas manifestações de Cristo e do Espírito, na única economia divina, pois tal conexão exprime a unidade do mistério pascal cumprida pela missão do Filho e consumada pela efusão do Espírito Santo. A identidade pascal estabelece a relação entre eles e a especificidade de cada um. (CNBB, Doc 107, 129, 2017)

A IVC precisa conduzir o iniciado a uma transformação ou a um início de uma transformação, porque sabemos que ser cristão é estar em processo, em caminho. O batismo é a porta de acesso para a vida em comunhão, para a vivência eucarística, é um processo global, conjunto, em todos os sentidos. Não se pode ser batizado para viver o batismo fora do mundo, o batizado vive o mistério de Cristo no mundo, que é espaço da presença de Deus. O encontro com o Senhor é um encontro com a vida em todas as suas instâncias, o que leva a superar a maneira individualizante, autorreferencial da existência. É próprio do viver humano estar voltado para o outro, para a alteridade, numa abertura ao mundo, o contrário leva ao fechamento, ao egoísmo, a um individualismo doentio.

O Concílio Vaticano II apontou a necessidade de resgatar o sentido unitário dos três sacramentos ao recuperar o catecumenato e pedir que se refletisse sobre a unidade entre batismo e crisma. O resultado do apelo do Concílio se expressou concretamente no RICA (Ritual de Iniciação Cristã de Adultos, 2013). Nos seus primeiros artigos, nas Observações preliminares, citando texto do Concílio3 destaca a teologia da filiação no batismo, a teologia da unção na crisma e a teologia da comunhão eucarística: o batismo é o sacramento que transforma o homem em filho de Deus em Cristo pelo Espírito; a crisma, doando o mesmo Espírito, configura ao Senhor, conforma os corações para viverem a nova vida na oferta eucarística, participando da comunidade, exprimindo a unidade como membros do povo de Deus (RICA, 2013, p. 13). O documento 107 da CNBB (2017) destaca a urgência de superar essa fragmentação pastoral, pois os três sacramentos “são integrados no mesmo caminho de fé, como experiência vital e de crescimento no seio de uma comunidade eclesial” (CNBB, Doc 107, 126). O Novo Diretório para a Catequese, em 2020, também reitera a necessidade de favorecer a compreensão pastoral mais unitária do percurso da iniciação (DC 2020, #70). Toda essa atenção da Igreja evidencia que há um sentido teológico na relação batismo-crisma-eucaristia que contribui para um melhor desenvolvimento do processo evangelizador e catequético da Iniciação à Vida Cristã.

O percurso da iniciação cristã deve levar o fiel a permanecer na vida cristã através da inserção na comunidade eclesial, que é espaço de iniciação, de catequese, de acompanhamento do crescer e amadurecer na fé, de vivência fraterna de comunhão, de entrega. O mistério da eucaristia é nos conformar à missão de entregar a vida em favor do próximo, como Jesus demonstrou: os sacramentos da iniciação expressam a teologia trinitária a partir de seus fundamentos teológicos, pois a vida de Jesus testemunha, ao cumprir sua missão, acompanhado pelo Espírito, o que é ser Filho do Pai. O batizado vive como filho adotivo de Deus em Cristo na força do Espírito, participando da comunhão eucarística de mesa. Iniciar-se na vida cristã é adentrar em uma vida de comunhão de pessoas divinas tal qual Jesus Cristo nos revelou. Sentar-se à mesa para participar da ceia do Senhor significa uma atitude de vida fraterna, pois na ceia do senhor não há exclusão e todos devem partilhar o alimento, oferecendo a vida nas mãos de Deus numa postura de humildade e serviço. Boselli (2017), tratando da teologia eucarística ocidental, a partir das homílias de Agostinho, observa:

Ser aquilo que se recebe, este é o mandatum eucharisticum, o “mandamento da Eucaristia”. Por isso, a expressão “comunhão” não indica apenas o ato de comer o pão eucarístico mas também a razão, a finalidade para qual os cristãos se alimentam: ser igreja-comunhão formar um só corpo em Cristo. (p. 114)

O autor prossegue:

Se os cristãos fossem, em sua maioria, ajudados a compreender que o objetivo da Eucaristia é fazer deles um só corpo, uma comunhão de irmãos e irmãs na fé, certamente compreenderiam que a participação na assembleia litúrgica dominical não é questão de preceito, de observância, mas de identidade, daquilo que cada um é chamado a ser como crente, e daquilo que implica o dizer-se crente. (Boselli, 2017, p. 115)

O batismo torna o fiel filho adotivo do Pai, no dom do Espírito, que conforma o batizado em Cristo; é o Espírito que conduz a Cristo para que se possa viver no Pai no amor eucarístico. A eucaristia é o ponto central do Mistério Pascal, pois o penetra, o revela e é o sentido primordial da vida cristã, a vivência na comunhão fraterna. A fé deve crescer, amadurecer, a iniciação coloca o cristão em abertura à ação do Espírito que não é mágica, se vislumbra na comunidade eclesial por meio da escuta da Palavra, do alimento da eucaristia e das ações proféticas, é a conversão pastoral em estado permanente de missão, (EG, 2013, p. 23), pois a fé é eclesial, recebemos da Igreja, do testemunho dos apóstolos e, assim, seguimos nos passos de Cristo. Os sacramentos da Iniciação à Vida Cristã se inserem no plano da salvação e inserem os cristãos na salvação. No entanto, sem a vivência comunitária os cristãos arriscam de viver uma fé individualista e subjetivista, que pode se traduzir num contratestemunho diante do mundo. A comunhão eucarística abre o sentido de reunião, de encontro, de cuidado com o outro, o próximo, os pobres, os injustiçados, com todos os que sofrem, àqueles que precisam de Deus.

O primeiro sentido do batismo, que vem da etimologia da palavra,4 é o de imergir, de mergulhar na água. A água é elemento físico vital para os seres humanos, elemento criador, que gera a vida, que limpa, lava, mas também pela sua força pode destruir. Esse sentido potente da água como fonte de vida, e como a força que lava até a morte, é transplantado para o campo simbólico. As abluções, as lavagens, eram frequentes no mundo antigo como símbolo de purificação (Borobio e Tena, 1993, p.78). Assim, o batismo não é uma novidade cristã, porém o batismo cristão ressignifica o sentido de batismo, que não é mais uma simples purificação, mas uma vida nova na água e no Espírito (Jo 3:4-5): é morrer e ressuscitar com Cristo, é a inserção no mistério pascal (Goedert, 1987, p.58). Essa vida nova implica o perdão dos pecados, isto é, se recolocar no caminho de filho de Deus. Naturalmente, podemos dizer que somos todos criados por Deus, somos sua obra, porém em Cristo o homem se torna algo novo, nasce de novo. Esse nascimento ofertado por Deus, em seu Filho, requer uma abertura do homem através do arrependimento, de uma disposição para Deus na fé. Infelizmente, ao longo da história, os sacramentos passaram a ser entendidos como remédio (Lafont, 2000, p. 96) para os males da alma, e o batismo como perdão dos pecados se dotando de uma conotação moralista. O arrepender- se implica o deixar o “homem velho para trás” e se dispor para viver a vida nova, colocar-se novamente à disposição do serviço de Deus, da escuta de Deus, da obediência a Deus, como Cristo se colocou. Ao perdoar os pecados, o batismo abre o homem para viver como filho de Deus, o sentido teológico do batismo é a filiação, é colocar o homem no caminho de volta ao Pai.

A unção do Espírito é a força do amor que guia e conforma para realizar o caminho de Filho do Pai. A Unção, conforme explica Taborda (1998), é um dos nomes do Espírito (Spiritalis unctio), tornando-se, dessa forma, expressão da doação do Espírito (p. 198). Os primeiros cristãos não entendiam a unção separada do batismo, pois assim como Jesus, que após o batismo, saiu em missão com a força do Espírito, os cristãos ungidos no Ungido têm como missão anunciar o Evangelho. Na relação trinitária se pode dizer que o Pai unge, o Filho é o Ungido e o Espírito Santo é a Unção (Santana, 2010, pp. 278-279). A unção é a força do amor do Espírito de Deus para levar os batizados a cumprir sua missão de filhos adotivos do Pai em Cristo, participando de uma vida eucarística de serviço, de comunhão, de solidariedade e amor ao próximo. A crisma só pode ser entendida plenamente em sua relação com o batismo, como teologia da unção. É sabido que a origem do sacramento da crisma ocorre a partir de ritos pós-batismais, ou imediatamente seguintes ao batismo ligados ao recebimento do Espírito. Os problemas pastorais levaram a se deixar a crisma para depois, e com o tempo a teologia que se construiu em torno da crisma, associando-a ao evento de Pentecostes, trouxe problemas: se o Espírito é dado no batismo, conforme atesta o Novo Testamento, qual o lugar teológico da confirmação? (Nocke, 2012, p. 235). A resposta mais evidente é a de que a crisma se liga ao batismo e o complementa (Taborda, 1998, p. 26); além disso, em cada sacramento o Espírito vem, de uma maneira especial, para conformar os caminhantes da fé em Cristo. A crisma enriquece o batismo, que fundamenta a crisma e ambos tendem para a eucaristia.

A eucaristia é o sacramento da unidade, é a mesa da reunião, do encontro, do pão que se reparte simbolicamente para se concretizar existencialmente. Na última ceia, Jesus antecipa simbolicamente o que iria viver concretamente, fisicamente, e pede que se refaça esse ato como memória de tudo o que se passou nele. Então, a eucaristia se repete a cada semana para que, impulsionado pelo Espírito, o cristão possa viver eucaristicamente na mesa do mundo, nos encontros do mundo. O encontro cristão implica a existência do outro, do diferente, do que precisa de mim, daquele de quem me torno próximo, pois Jesus ao sentar-se à mesa inclui a todos os que sofriam. A imagem do grande banquete de Deus, da grande festa, se realiza em Cristo. Os batizados são o povo voltado para Deus que vive cultivando uma existência eucarística: “Toda a história da salvação está presente na Eucaristia, e a Eucaristia está presente em toda a história da salvação” (Cantalamessa, 1993, p. 6).

Somos batizados e crismados para viver na comunhão eucarística, enquanto celebração, comunidade eclesial e vida, testemunhando na existência a trinitariedade de nosso Deus. Não saímos da iniciação prontos e acabados, por isso a Eucaristia se repete com a formação permanente na comunidade, pois permanecer na comunhão comunitária é o caminho para aprofundar a vocação batismal. Refletir sobre a unidade dos sacramentos pode ajudar os fiéis a compreenderem mais claramente a centralidade da Eucaristia e tudo o que significa. A catequese mistagógica hoje tem como desafio ajudar os fiéis a transcenderem, a abrirem-se a uma mentalidade menos individualista e mais fraterna, efetivamente de comunhão.

3. Catequese mistagógica hoje: caminhos de renovação

O que pode ser uma catequese mistagógica hoje dentro desse processo? A mistagogia implica permanecer na fé, permanecer no amor de Deus, permanecer na comunidade na oração e na ação, para testemunhar no mundo. Uma catequese mistagógica é muito mais uma orientação mistagógica, uma compreensão dos sacramentos e da liturgia como espaços-tempo de realidade da salvação e não como meros eventos rituais sociais. É necessário desenvolver uma mudança de mentalidade a partir do olhar para a Palavra e para a celebração, entendendo que a celebração é desenvolvimento da Palavra.

A realidade cada vez mais desafiante a partir da modernidade exigiu da Igreja mudanças e reflexões que desembocaram no Concílio Vaticano II e impulsionaram um novo agir pastoral. Nessa caminhada, a catequese, como uma das principais instâncias educativas da fé, vai aprofundar o seu sentido primordial de “fazer ressoar” no coração dos homens o Mistério do amor de Deus (DC 2020, #55). Como instância evangelizadora da Igreja, a catequese não é apenas uma ação de ensinamento formal para transmitir doutrina e preparar para celebrar sacramentos. A catequese ensina e transmite a fé, como uma realidade eclesial, dinâmica, complexa a serviço da Palavra de Deus, acompanhando, educando e formando na fé e para a fé, introduzindo à celebração do Mistério, iluminando e interpretando a vida e a história humana de maneira integral e harmoniosa (DC 2020, #55). Nessa maneira de compreender a catequese, a inspiração catecumenal é um fio condutor que se desenvolve num processo que vai da palavra à mistagogia, da mistagogia à palavra numa circularidade progressiva que inicia e acompanha o iniciado para perseverar na fé. A ação catequética querigmática leva a pessoa a querer conhecer sempre mais Jesus, desperta o desejo da experiência, de penetrar no mistério,5 daí a mistagogia: ser conduzido aos mistérios no qual foi iniciado, ou seja, aprofundar-se na riqueza espiritual que provém dos sacramentos e da liturgia.

Assim, a catequese mistagógica não pode ser entendida como uma ação pós-sacramental, porém como uma educação à sensibilidade litúrgica e sacramental, ao simbolismo, aos gestos, aos sentidos, integrando, harmonizando o celebrativo à vida na comunidade e na existencialidade (DC 2020, #98). A liturgia e os sacramentos são espaços de atuação salvífica, porém infelizmente ainda há uma visão limitante, empobrecedora, incompleta, parcial do sentido dos sacramentos. É preciso atenção ao sentido que os Padres da Igreja nos legaram a respeito dos sacramentos como realidade da salvação. Os Padres da Igreja,

qualificam como sacramentos tanto os acontecimentos/palavras do AT quanto os acontecimentos/palavras de Cristo e depois ainda os ritos sagrados da Igreja. A intenção era de apresentar todo o tempo e toda a realidade da revelação (AT-NT) sob o mínimo denominador comum de “sacramentalidade”: a revelação acontece, sempre, por meio dos “sinais sagrados”. É palavra, gesto, acontecimento/evento, história. É mistério. (Avelar, 2004, p. 189)

A mistagogia é uma maneira de despertar no outro a percepção da presença amorosa de Deus em sua vida, é um caminho de iniciação e de aprofundamento cristão baseado na experiência celebrativa para explicitar o sentido histórico-salvífico dos sacramentos. A catequese em unidade com outras dimensões eclesiais, como a liturgia, os sacramentos, o testemunho, tem a tarefa de ensinar evangelizando, que se realiza num processo dialético de abertura ao outro, ao mundo, saindo da esfera apenas intraeclesial e se estendendo à existência, a todas as alegrias e angústias humanas. Nesse processo integrador e global, é necessário recuperar a teologia da unidade dos sacramentos da Iniciação à Vida Cristã, pois não há como evangelizar de maneira fragmentada.

A ação mistagógica encaminha o fiel para a descoberta do Mistério, a descoberta da presença de Deus em sua vida e na história: “a mistagogia revela uma pedagogia da relação, da comunicação, da experiência pessoal e comunitária. O discernimento pessoal, pastoral e comunitário torna-se elemento fundamental no processo de abertura e de aprofundamento da fé cristã” (Costa, 2014, p. 140). Pedagogia aqui significa condução, orientação, não como método específico escolar, mas como relação de abertura a Deus. Na verdade, essa condução é obra do Espírito, do próprio Deus. A mistagogia aprofunda a Sagrada Escritura na vivência sacramental e comunitária e encaminha o catequizando a realizar a sua descoberta com discernimento: “Eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2:42). Quando a comunidade se reúne para rezar, para louvar e agradecer a Deus, deve ter consciência da graça vivida naquele momento e da responsabilidade de testemunhá-la na comunidade e no mundo.

Ser batizado é um chamado a uma vivência na presença de Deus no seio de uma comunidade que vive em comunhão, mesmo na diferença. Toda comunidade tem a responsabilidade de educar na fé, a tarefa não é somente do catequista. O agente de pastoral assume o papel de ‘mistagogo’:

O termo ‘mistagogo’ sugere essa tarefa da Igreja, de ontem e de hoje, de conduzir pela mão o catecúmeno, para que descubra sua forma pessoal de seguir ao Senhor. E essa iniciação, esse acompanhamento mistagógico, ocorre não apenas no campo dos encontros específicos do catecumenato, mas tem caráter essencialmente comunitário, se dá na Igreja e como Igreja. (Costa, 2014, p. 141)

Uma Igreja mais mistagógica, uma catequese mais mistagógica, significa uma comunidade eclesial voltada para o próximo, vivendo suas dificuldades em conjunto, num diálogo fraterno, onde um é suporte para o outro, numa vivência de comunhão. Esse é um caminho de renovação pastoral, que implica uma mudança de mentalidade e uma necessidade de conversão e reconversão dos agentes de pastoral, como pede o Magistério de Francisco, compreendendo que ser cristão é estar sempre na escuta atenta aos sinais dos tempos, ao sopro do Espírito, ao falar do outro, numa relação dialogal entre Deus e o humano.

Conclusão

Iniciar-se na vida cristã é mergulhar no Mistério de se tornar ser filho de Deus, em Cristo, adentrando em uma vida eucarística, uma vida voltada para Deus, para o próximo, para a criação. Por isso, para que a Igreja possa hoje realizar esse caminho de iniciação, contribuindo para a formação de discípulos, de batizados que vivam sua vocação, são necessárias ações evangelizadoras que conduzam a essa transformação. Pretendemos demonstrar que a superação de uma noção pastoral fragmentária dos sacramentos de IVC pode contribuir para um melhor desenvolvimento do itinerário catequético, principalmente para aprofundar o senso de uma catequese mistagógica.

O retorno à unidade dos sacramentos de IVC significa recuperar a compreensão, no campo pastoral, na vida dos fiéis, da relação batismo, crisma que tendem para e eucaristia, evidenciando a dinâmica eclesial e pneumática dos três sacramentos. A unidade traz a noção de conjunto e desvela a vocação de batizados para viver em comunhão eucarística. Eucaristia como vida plena cristã. O itinerário catequético a partir de um eixo de inspiração catecumenal revela o senso mistagógico como uma ‘porta’, um caminho, para a renovação pastoral. Os primeiros cristãos nos legaram uma maneira de compreender o Mistério na Palavra, na celebração e na existência. A espiritualidade litúrgico-sacramental encarna o amor desvelado na Sagrada Escritura por meio da ação do Espírito. Esse itinerário caminha da Palavra à celebração e se estende para a existência no testemunho do vivido na comunidade. A comunidade é espaço querigmático-mistagógico, pois deve expressar o sentido pleno de ser batizado, ou seja, de se encontrar na presença amorosa de Deus.

A própria maneira de educar na fé se enriquece a partir de um sentido pleno do ser batizado. O batismo é uma convocação a fazer parte de uma história que vem se desenvolvendo num encontro entre Deus e a humanidade: é o mistério do amor transbordante de Deus. A Igreja é a comunidade dos reunidos, dos mergulhados nesse mistério. Uma visão unitária dos sacramentos favorece a compreensão mais clara da centralidade da eucaristia e do significado do batismo e da eucaristia, e da dinâmica eclesial e pneumática deles. A mistagogia se compreende, dessa maneira, não como uma atitude intimista, mas como uma experiência de encontro com Deus, de descoberta da presença amorosa de Deus na vida pessoal e na existência concreta, a partir de um sentido litúrgico e sacramental que expressa a ação trinitária do Deus cristão. Assim, um itinerário catequético de inspiração catecumenal caminha sempre da Palavra que se encarna na celebração e na vida, nas ações concretas de amor, de defesa dos desamparados, dos que sofrem, dos que se encontram nas periferias existenciais, como demonstrou Jesus, na sua caminhada como Filho de Deus na terra.

Notas

  1. elzaferreiradacruz@gmail.com
  2. Usaremos também a forma abreviada de Iniciação à Vida Cristã (IVC).
  3. Nas Observações preliminares cita Ad Gentes, #14.
  4. “Batismo significa “imersão”, “banho” (Cf. Rocchetta, 1991, p. 233).
  5. O termo sacramentum é uma tradução do grego mystérion.

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