Reseñas

A Profícua (In) Completude de Marx: Entre Questões Biográficas e Escolhas Editoriais.

Fabiana Marchetti
Universidade de São Paulo, Brasil

A Profícua (In) Completude de Marx: Entre Questões Biográficas e Escolhas Editoriais.

Amoxtli, núm. 11, 2024

Universidad Finis Terrae

Musto Marcello. Repensar Marx e os Marxismos. 2021. São Paulo. Boitempo. 320pp.

Recepción: 14 Noviembre 2023

Aprobación: 11 Marzo 2024

O livro de Marcello Musto Repensar Marx e o Marxismo reúne alguns estudos que o autor realizou sobre a vida e obra de Marx, publicados originalmente em italiano e adaptados, como afirma o autor, ao público brasileiro. Em seu trabalho, Musto pretende construir um novo guia de leitura sobre a atividade política e intelectual do pensador alemão, analisando seus percursos de formação e escrita, a recepção de suas ideias junto aos interlocutores contemporâneos e como elas passaram a circular e se reelaborar na atuação dos adeptos do marxismo, especialmente, por meio dos sucessivos responsáveis pelo material deixado pelo autor alemão após a sua morte.

A análise do texto pode ser iniciada por uma constatação aparentemente óbvia de sua estrutura organizada entre capítulos hierarquizados pela biografia intelectual de Marx e outros orientados pela história editorial de suas elaborações e como, sob esta perspectiva, elas impactaram os debates marxistas deste século e meio que nos separa de sua morte. Alternância das perspectivas biográfica e editorial, em nossa opinião, torna-se a linha mestra para a narrativa do livro e lhe atribui originalidade diante do vasto repertório de pesquisas com o qual o autor dialoga ao longo do texto.

Nos momentos mais centrados na biografia de Marx, Marcello Musto discorre sobre sua origem social, formação escolar e acadêmica e atuação política, colocando sob este fio condutor o surgimento de seus interesses de leitura, o desenvolvimento de seus métodos de estudo e a construção de projetos de escrita em dois momentos gerais: o primeiro concebido em sua vivência no ambiente intelectual alemão (Capítulos 1 e 2); e o segundo desenvolvido na medida de seu contato com as diferentes correntes de pensamento que interpretavam a realidade europeia, e com a própria realidade da classe trabalhadora e suas lutas, especialmente a partir de seus sucessivos exílios em Paris, Bruxelas e Londres (Capítulos 2 e 4).

Estas análises ressaltam, evidentemente, as qualidades e os méritos que constroem o percurso de um grande pensador e militante revolucionário, mas é preciso assinalar como Musto também coloca as fragilidades e inconstâncias que humanizam Marx, criando uma visão realista sobre a elaboração e reconhecimento de sua obra, fato que contribui significativamente para os estudos da área consolidarem posições ponderadas e mais realistas entre o mito, idealizado por sua capacidade em diagnosticar e, em certa medida, prever os desdobramentos do capitalismo; e o alvo ‘fácil’ de críticas que, por vezes, ele se torna diante das exigências contemporâneas sobre suas limitações, preconceitos e equívocos. Dois extremos motivados talvez pelas mesmas idealizações de que a validade de seu pensamento se daria apenas se encerrado em um todo coerente e homogêneo.

Nesse sentido, Marcello Musto também é feliz em ressaltar o elevado nível de autoexigência de Marx sobre seus escritos. Esta característica, por um lado, apresenta-nos ao personagem audacioso, marcado por pretensões intelectuais e políticas grandiosas na busca por cumprir com uma responsabilidade coletiva e por sua obstinação em contribuir com a transformação da realidade. Por outro, a nosso ver, transparece também o temperamento um tanto inseguro do pensador, sempre temeroso de que suas ideias fossem julgadas como incompletas ou insuficientes por seus interlocutores, especialmente, quando se tratava de apresentá-las em livros.

Muitos autores pontuam essa característica de Marx, no entanto, ao construir uma narrativa que sobrepõe biografia e edição, Musto requalifica a relação inversamente proporcional entre a voracidade nos estudos e a produção de um grande volume de manuscritos, cartas e artigos, e sua atividade editorial. Ainda que não se utilize de termos próprios da história do livro e da edição1, ou da sociologia dos textos2, o autor de Repensar Marx e os Marxismos nos permite inferir que para além da personalidade e de questões de ordem prática, como os exílios, a necessidade de ter um trabalho que lhe rendesse algum dinheiro para o sustento da família (Capítulos 4 e 7), as crises e debates de seu tempo (Capítulos 5 e 9), a autoexigência de Marx com a publicização seus trabalhos mais complexos, partia de uma concepção do livro enquanto suporte que material e cumpre simbolicamente o papel de delimitar uma teoria ‘acabada’3, completa ou conclusa, de interpretação e intervenção na realidade.

Esta questão nos faz refletir se talvez por isso a maior parte de suas obras editadas e publicadas em vida tenham sido textos de polêmica filosófica, cuja natureza poderia ser considerada circunstancial no sentido de que, no momento da escrita, pretendiam criticar conceitos pontuais e não construir um novo sistema de pensamento totalizante. O mesmo valeria para a publicação de O Manifesto Comunista produzido em coautoria com Engels: um panfleto político solicitado pela Liga Internacional dos Trabalhadores que, originalmente, deveria cumprir com uma função “imediatista” de mobilizar as bases da organização diante de um ascenso dos movimentos populares. Apenas posteriormente, como não poderia ser previsto pelos proponentes e autores, o texto adquiriu a dimensão de um longseller , sendo retomado como elemento base da práxis de organizações revolucionárias em todo o mundo.

A cautela em publicar seus trabalhos de fôlego, revela-se especialmente no imbróglio que envolve o projeto, desenhado e redesenhado diversas vezes por Marx, de sua ‘economia’. Por suas cartas com Engels e com editores, sabe-se que O Capital deveria realizar em si um novo sistema de pensamento para a compreensão do capitalismo. Como bem apresenta Marcello Musto (Capítulo 7), a concretização deste plano fica no meio do caminho: Marx acompanha a publicação do primeiro volume ―em alemão e algumas traduções―, deixa o segundo preparado e parcialmente organizado e do terceiro livro ficam textos soltos e ainda mais inconclusos.

A nosso ver, ao discutir a produção do volume I de O Capital, Musto realiza uma espécie de narrativa de simbiose entre a vida e a obra de Marx. No entanto, a magnus opus do velho mouro não constitui o centro do debate construído em Repensar Marx e os Marxismos que não dedicará nenhum capítulo específico aos esforços de Engels e dos demais dirigentes da II Internacional, e de organizações posteriores, em concluir os segundo e terceiro volumes.

Entre a massa de textos dispersos e editados postumamente, Marcello Musto opta por destacar o processo de contato, descoberta e publicação dos cadernos que deram origem aos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 (Capítulo 3), aos Grundrisse (Capítulo 6) e, para encerrar o livro, constrói um panorama sobre os diferentes projetos que se propuseram a organizar as Obras Completas de Marx (Capítulo 10). A escolha parece valorizar neste guia a conscientização do leitor sobre a importância dos textos que orbitam em torno d’O Capitalcomo resultados de escolhas políticas e intelectuais que se constroem e são transmitidas por meio de projetos editoriais de distintas naturezas. Se Marx fora rigoroso com os critérios para publicar livros, a narrativa nos mostra que seus seguidores reconhecem esse fato e, a partir de diferentes objetivos intelectuais e políticos traçam estratégias para considerar, justamente, a forma com a qual este suporte poderá contribuir para o avanço do debate marxista.

Sobre os Manuscritos, Marcello Musto trata dos momentos em que foram recuperados nos anos 1920-1930, depois deixados de lado e, uma vez mais, redescobertos na década de 1960 para se tornarem o conjunto de textos que funda o que ele chama de um mito “do Jovem Marx”. Diante destes fatos, ele retoma a importância dos aspectos políticos que levaram à descoberta dos textos, os equívocos em sua identificação e, em seguida, os critérios que o fizeram permanecer ou serem excluídos dos projetos oficiais de publicação de suas Obras Completas. Reproduzindo estes altos e baixos, a análise elucida como as diferentes configurações materiais do texto, ou seja, as escolhas que realizaram suas diferentes edições como um corpo mais ou menos coeso de ideias e a apresentaram em projetos maiores, permeiam o surgimento de um debate balizador da polarização entre o marxismo oficial soviético ―em defesa da rígida e hierarquizada separação entre uma obra juvenil e uma de maturidade no conjunto dos escritos de Marx― e o chamado marxismo ocidental ―que considera mais elementos de continuidade que de ruptura nas diferentes fases de sua produção.

Análise do processo de publicação dos Grundrisse passa pelas mesmas questões de escolhas editoriais e dos desafios de transformar em livro um conjunto de textos relativamente dispersos. E, embora o capítulo não traga a mesma discussão política do anterior, pelas características do texto e seu ritmo de difusão, ele contribui para historicizar os processos de apreensão dos escritos de Marx e reforçar a existência de muitos conceitos, análises e mesmo linhas de raciocínio que ele deixa em aberto nos seus processos de estudos e que devem ser explorados de modo cada vez mais detalhado e atento pelos pesquisadores de hoje, seja para alimentar polêmicas, seja para atualizar seus usos em temas contemporâneos ainda pouco explorados pelo marxismo.

No último capítulo, o panorama dos resultados e impasses dos projetos dedicados às Obras Completas de Marx retoma como a questão editorial se alinha a determinados interesses políticos, ao mesmo tempo, em que contribui para estabelecer parâmetros, materialmente explícitos nos livros produzidos, nas escolhas, presenças e ausências daqueles conjuntos, para o avanço de debate marxista. A ideia de que seria possível construir edições definitivas que publicizassem o conjunto do pensamento de Marx, de suas anotações às correspondências, foi como se sabe uma preocupação constante de seus seguidores. No texto de Musto, fica clara a importância destes projetos, suas dificuldades e insucessos por estarem confrontados constantemente por desafios de ordem política e, não menos importante, por enfrentaram também diversas dificuldades de cunho intelectual, seja no sentido da complexidade teórica ou da exigência física de trabalho sobre um volume tão expressivo de material deixado pelo pensador alemão.

Desta maneira, a análise que Marcello Musto escolhe para encerrar seu livro reafirma como a relação entre os processos de seleção dos textos de Marx a serem publicados e a expressão de sua materialidade dentro destas propostas acaba por constituir um repertório de marxismos ‘oficiais’ e ‘não oficiais’/ ‘críticos’, contribuindo para sua renovação e constante atualidade. E, enquanto estas intenções de Obras Completas passam a instituições reconhecidas por sua autonomia intelectual em detrimento do uso político de momentos anteriores, tornam-se ainda mais legítimas, como a atual MEGA2, que se desenvolve atualmente sob responsabilidade compartilhada dos diversos institutos de pesquisa reunidos na Fundação Internacional Marx-Engels4 Finalmente, por este histórico, a própria transformação dos sucessivos projetos e de suas edições fazem emergir novas fontes históricas para pesquisas sobre a difusão do pensamento marxista.

Entre a biografia de Marx e uma história editorial de alguns dos principais textos marxistas, Repensar Marx e os Marxismos nos oferece uma nova ferramenta para trabalharmos sobre uma das principais correntes de pensamento que balizou a história de boa parte do século XX e que continua a se atualizar diante dos desafios políticos, sociais e econômicos colocados para humanidade no século XXI.

Bibliografia

Febvre, Lucien e Martin, Henri-Jean. O Aparecimento do Livro. São Paulo: Edusp, 2017 [1957].

Mckenzie, Donald F. Bibliografia e Sociologia dos Textos. São Paulo: Edusp, 2018 [1999].

Sordet, Yann. História do Livro e da Edição. São Paulo/Cotia: SENAC/Ateliê Editorial, 2023.

Notas

1 Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, O Aparecimento do Livro (São Paulo: Edusp, 2017); Yann Sordet, História do Livro e da Edição (São Paulo/Cotia: SENAC/Ateliê Editorial, 2023).
2 Donald F. Mckenzie, Bibliografia e Sociologia dos Textos (São Paulo: Edusp, 2018).
3 Com base bibliografia referida anteriormente, o livro deve ser tomado enquanto suporte que materializa a transmissão de ideias, encerrando na edição um sentido de concepção e fixação de determinado texto. Esse sentido normalmente se apoia em recursos de apresentação, introdução, comentários e outros signos que orientam a recepção da obra no momento de sua publicação. Embora esta possa ser refeita e reelaborada ao longo do tempo ― como ocorrerá com a própria obra de Marx ―, ou seja, que haja uma fixação relativa do texto no longo prazo, uma vez que ela é lançada ao público na forma livro este acaba por atribuir-lhe características de totalidade e completude que marcam a sua recepção e apropriação teórica. Os debates marxistas colocados por Musto e a perspectiva editorial implícita em sua narrativa são exemplos da constante tensão entre o sentido e possibilidades de abordagem das obras publicadas sob a chancela do autor e aquelas realizadas pela apropriação e/ou organização de manuscritos consideradas ideias ‘em aberto’ por não estarem definidas pelo autor neste suporte.
4 Internationale Marx-Engels-Stiftung (IMES) com sede em Amsterdã, criado por iniciativa do Instituto Internacional de História Social Amsterdã, a Academia de Ciências de Berlim-Brandenburg (BBAW), a Casa Karl Marx (KMH) da Fundação Friedrich Ebert em Trier, os “Arquivos do Estado Russo para História Política e Social” (RGA) e o “Instituto Russo Independente para o Estudo dos Problemas Sociais e Nacionais” (RNI), ambos com sede em Moscou.
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