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Amoxtli, 2023, n° 10, ISSN: 0719-997X, doi 10.38123/amox10.399

Ananaz, Kanguimbu. En las entrañas del mar - Nas entranhas do mar. Tradução de Larissa Gonçalves Menegassi e Ignacio Rivera Pallante. Chile: Editorial Puntángeles, 2022.

Nas entranhas do mar: a revelação poética em Kanguimbu Ananaz1

A revelação poética, na obra Nas entranhas do mar, da escritora angolana Kanguimbu Ananaz, engendra uma experiência histórica de costumes, o que valeria dizer, um cotidiano no entorno de uma possível imagem de uma paisagem marítima, sem perder de vista seu caráter visceral. Frente a uma alusão ao próprio título da obra, vê-se na transcendência ao âmago ou à "entranha" da própria condição humana revelada na similitude da palavra poética, uma possibilidade comum a todos os tempos: a pluralidade e unidade inerentes a uma verdadeira dialética do sentido.

Assim, mãos literais de seu tempo, "as marisqueiras", apenas como mera ilustração na obra de Ananaz, permeiam a atmosfera rotineira em forma de um ritmo, que ora possa ser encantado por uma revelação daquelas "entranhas" no papel metafórico do incomensurável, ora permaneça ininterrupto na passagem dos dias, condição suscetível, aliás, a qualquer indivíduo. Mas ao lado das "marisqueiras", verdadeiras "mátrias", como aponta Ananaz sobre uma determinada cor local, há uma:

Personificação da nossa mátria
A bondade a religiosidade
A graciosidade oh! Colonizadores
da ancestralidade (p. 36)

Então, das mãos das marisqueiras, no labor do dia na praia, emergem, ao mesmo tempo, "mãos pescando mistérios no coração do atlântico" (p. 24), das quais se revelam os "colonizadores ancestrais". À vista disso, os grandes navegadores e os grandes heróis épicos de mares já navegados são ritmos de uma imagem poética reveladora, como mesmo diz Ananaz, "no semén dos deuses" (p. 26), não mais agora da mátria-marisqueira, mas da pátria dos tempos antigos mediante o enfrentamento imensurável nas entranhas do mar.

Desse modo, portanto, "a arte transcende o limite da imaginação" (p. 30) e a palavra poética de Ananaz torna-se ritmo e imagem sem cessar. Assim, do entre o ir e o vir dos moradores locais próximos ao mar, há o abrigo do mítico entranhado na palavra ou na linguagem que requer o seu desdobramento: um verdadeiro mergulho ao desconhecido que ecoa o sentido da vida e do poema.

Inegavelmente, reitera-se que a obra de Ananaz suscita tanto o tempo presente das "calejadas palmas" (p. 30) dos trabalhadores locais, como o tempo arquetípico de outros mares, mas que são sempre os mesmos —plural e unidade—, semelhante ao que Octavio Paz, em relação ao fazer poético de modo geral, diz sobre a experiência poética ser reveladora de "nossa condição original".2 E a "condição original" do indivíduo também acontece com as palavras, e ao reiterar-se o mesmo autor, extrai-se que elas, as palavras:

São nós mesmos, fazem parte do nosso ser. São o nosso próprio ser. E por serem parte de nós, são alheias, são dos outros: são uma das formas da nossa 'outridade constitutiva'.3

Por conseguinte, essa "outridade constitutiva", indubitavelmente, reacende a experiência do poema como "recriação", e:

Como toda recriação, o poema do leitor não é uma réplica exata do poema escrito pelo poeta. Mas, se não idêntico em relação a isto ou aquilo, ele o é quanto ao ato de criação: o leitor recria o instante e cria a si mesmo. O poema é uma obra inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um novo leitor.4

Assim sendo, é sagaz pensar na escritora Kanguimbu Ananaz sob os aspectos de outras vozes (ou serão mãos?) que tecem, ao redor de sua obra poética, respectivas visões em forma de "releituras". No que concerne a tais "releituras", destacam-se, de antemão, no livro Nas entranhas do mar , o cuidado e apreço da Doutora Daiana Nascimento dos Santos, já vistos anteriormente em Seios e ventres,5 também de Ananaz, e que, nesse ínterim, em consonância com uma apresentação da obra em destaque, dialogam com a Doutora Juliana Santos Menezes, em prol de um breve panorama da literatura angolana e suas imbricações com a situação política e social do país.

Ainda sobre o "tecer" da obra de Kanguimbu Ananaz, em Nas entranhas do mar, ressaltam-se o prefácio e o posfácio ("recriações" a partir de referências a autores brasileiros), como são os exemplos do compositor, cantor e poeta Dorival Caymmi (1914-2008), e o escritor Jorge Amado (1912-2001).

Desse modo, do prefácio do professor Geferson Santana, em referência aos versos de Caymmi "quem vem pra beira do mar, ai/nunca mais quer voltar, ai", só como uma forma de exercício poética de uma contínua "recriação", faz-se uma comunhão com os seguintes versos de Ananaz, em resposta ao "por que ninguém mais quer voltar?" Porque:

O amor do mar
O que faz ninguém faz
O que dá ninguém dá (p. 21)

Se nesse "jogo poético", entre Ananaz e Caymmi, o mar é desejo inigualável de permanência, já, em outros aspectos, pode ser de tristeza e afastamento. À luz de tais inferências, realça-se o posfácio da obra Nas entranhas do mar , quando Édimo de Almeida Pereira, logo a partir de sua epígrafe, reacende outro mar, ainda que o mesmo, um mar saudoso que não traz mais o que se quer bem, a não ser sua imagem de saudade e pranto:

O mar6
Pescador quando sai nunca sabe se volta
Nem sabe se fica
Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos
Nas ondas do mar (Dorival Caymmi).

E ainda, desse modo, quando se torna cada vez mais vivo e sincrônico esse "jogo dialógico", "mais espesso à medida que se tenta dissipá-lo."7 Daí ser inevitável a organicidade de mais um fio, de mais uma onda em regresso aos grandes mares com suas dores e também perdas no "mar salgado" de Fernando Pessoa, um espelhamento coeso com os versos de Caymmi sobre o sofrimento que o mar provoca, e ambos, evidentemente, faíscas reanimadas pela poesia de Ananaz:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!8

Em conclusão, define-se que entre tantos possíveis fios que se entrelaçam nesse lúdico fazer poético (marisqueiras de seu tempo e tempo mítico dos mares/ Ananaz e Caymmi / Caymmi e Fernando Pessoa), a obra de Kanguimbu Ananaz é sempre um recomeço apto à sua revelação poética. Mas tudo, evidentemente, depende sempre de um leitor em busca de novos sentidos, que também são seus, dos outros, de um possível duplo em constante espera na outra margem. Trata-se de um jogo infinito e que só depende do lampejo do instante: uma submersão aos interstícios da linguagem, e aí, a volta à superfície de uma revelação humana ressignificada constantemente em espiral.

Ana Claudia Rodrigues
Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filhos-Unesp (Araraquara)
Brasil

Notas

  1. É extensa a produção cultural de Kanguimbu Ananaz, uma vez que além dos livros de poesia publicados desde 2002, como é o caso de Seio do deserto , há tantos outros relacionados ao mesmo gênero, como também aqueles ligados ao conto infantil e infanto-juvenil, como são os exemplos, dentre outros, de Avô Sabalo (2006) e Soba Kangeiya e a palavra (2010) respectivamente. Kanguimbu Ananaz, nascida no Bairro Forte de Santa Rita, Província do Namibe, tonou-se diretora da casa da cultura Njinga a Mbande. Psicóloga, Consultora social, Mestre em língua e literatura africana pela Faculdade de Letras-Universidade Agostinho Neto, Kanguimbu Ananaz transcende suas funções a tantos outros projetos, e, como mera ilustração, ao da arte culinária, chegando a ganhar o Concurso nacional de gastronomia em 2000. Reconhecida internacionalmente, Kanguimbu Ananaz participou de vários Fóruns sobre a literatura de língua portuguesa nomeadamente: África do Sul, Alemanha, Argentina, Cabo Verde, Cuba, Brasil, Israel e Portugal.
  2. Paz, Octavio, O arco e a lira, Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. 2.º ed. (São Paulo: Cosac Naify, 2014), 161.
  3. Ibíd., 185.
  4. Ibíd., 198.
  5. Cf. Ananaz, Kanguimbu, Seios e ventres (Luanda/Angola: Tchingapy Editora, 2020).
  6. Versos extraídos da epígrafe do posfácio da obra em destaque.
  7. Todorov, Tzvetan. As estruturas narrativas, Tradução de Fernando Cabral Martins (São Paulo: Perspectiva, 2006), 23.
  8. Pessoa, Fernando. Obra poética, vol. 2, (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995), 82.

Referencias

Ananaz, Kanguimbu. Seios e ventres. Luanda/Angola: Tchingapy Editora, 2020.

Paz, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. 2.º ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

Pessoa, Fernando. Obra poética. Vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

Todorov, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução de Fernando Cabral Martins. São Paulo: Perspectiva, 2006.