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Amoxtli, 2022, n° 9, ISSN: 0719-997X, doi 10.38123/amox9.321

Kafka e o realismo de O Processo contra o naturalismo do estado de exceção da tradição do oprimido

Kafka y el realismo de El proceso contra el naturalismo del estado de excepción de la tradición del oprimido

Kafka and the realism of The Trial against the naturalism of the state of exception of the tradition of the oppressed

André Luís de Macedo SerranoORCID logo , Luís Eustáquio SoaresORCID logo

Universidade Federal do Espirito Santo
Brasil

Resumo

Analisamos o romance O processo de Franz Kafka tendo como base o conceito de estado de exceção, desenvolvido por Walter Benjamin e Giorgio Agamben, a “última instância” dos aparelhos de Estado em Louis Althusser, o argumento de um Édipo muito gordo de Gilles Deleuze e Félix Guattari e a leitura de György Lukács sobre a estética realista e naturalista, com o objetivo de propor um conceito de literatura kafkiano que ao mesmo tempo corresponda e destitua a ontologia do ser social da milenar tradição do oprimido sem deixar de configurar uma totalidade de ser social sem soberano, sem vida nua.

Palabras-chave: Franz Kafka, estado de exceção, realismo, naturalism

Resumen

Analizamos la novela El Proceso de Franz Kafka a partir del concepto de estado de excepción desarrollado por Walter Benjamin y Giorgio Agamben, la "última instancia" de los aparatos estatales en Louis Althusser, el argumento de un Edipo muy gordo de Gilles Deleuze y Félix Guattari y la lectura de György Lukács sobre la estética realista y naturalista, con el fin de proponer un concepto kafkiano de literatura que al mismo tiempo corresponda y destituya la ontología del ser social de la tradición milenaria de los oprimidos sin dejar de configurar una totalidad del ser social sin soberano, sin vida desnuda.

Palabras clave: Franz Kafka, estado de excepción, realismo, naturalismo

Abstract

This article presents a reading of Franz Kafka's novel The Trial based on the concept of the state of exception developed by Walter Benjamin and Giorgio Agamben, Louis Althusser's "last instance" on the state apparatus, Gilles Deleuze's argument of a very fat Oedipus, and Félix Guattari's and György Lukács's readings of realist and naturalist aesthetics, with the aim of elaborating a concept of a Kafkaesque literature that simultaneously corresponds to and removes the ontology of social being from the millennial tradition of the oppressed, without ceasing to form the totality of a social being without sovereign, without naked life

Keywords: Franz Kafka, state of exception, realism, naturalism

O Processo e a metáfora das instâncias processuais

No ensaio Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, o filósofo francês Louis Althusser utilizou de modo figurado a expressão “em última instância”1 referindo-se ao mesmo tempo ao final de um “processo” (no sentido amplo da palavra), mas também ao conteúdo jurídico de “recorrer em instâncias”: primeira, segunda, terceira, quarta, etc.

Ao explicar a metáfora da base e da superestrutura na teoria marxista, ele compreendeu que as determinações materiais do sistema capitalista somente o são “em última instância”: elas estão tanto no final do processo quanto numa relação constante com as outras instâncias superestruturais. O “processo” localizado por Althusser prevê uma sobredeterminação do preceito materialista, sempre em última instância, que também é determinado pelas ideias, pela ideologia. Há um jogo de instâncias, determinadas e sobredeterminadas, que se alternam conforme as mediações que se estabelecem entre elas.

Seguiremos nesta leitura uma abordagem que se referencie nesses esboços científicos althusserianos, buscando compreendê-la nas imagens do texto literário O Processo2 (de 1925). Temos em vista que a ideia de processo em Kafka também apresenta algo de metafórico. Há um vazio que escapa ao âmbito puramente jurídico: uma imagem da lei que leva a outro lugar. Sempre parece haver outra instância superior do tribunal, que K. não consegue alcançar. Algo secreto e inefável. O que estaria determinado em última instância no processo kafkiano? Quais seriam suas mediações?

As mediações do estado de exceção em última instância

Se no ensaio “Sobre o conceito da história”, Walter Benjamin tenha assinalado que seria necessário engendrar um conceito de história que assuma o axioma de que “A tradição do oprimido nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra gera,3 propomos realizar um suplemento entre a regra do estado de exceção, analisada pelo pensador alemão, com o argumento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, de Kafka: por uma literatura menor, livro no qual é possível ler o seguinte: “Dir-se-ia que ao projetar a foto do pai no mapa-múndi, o impasse próprio da fotografia foi desbloqueado, inventou-se uma saída para este impasse, fez uma ligação com toda uma toca subterrânea e com todas as saídas dessa toc.4

Esse suplemento entre a concepção de história de Walter Benjamin e a ampliação de Édipo para a totalidade do ser social em Gilles Deleuze e Félix Guattari tem um duplo objetivo: 1. Analisar a estrutura narrativa de O processo, de Kafka como uma fotografia ampliada — em última instância — do estado de exceção como regra geral; 2. Verificar a hipótese de que há no romance em questão um conceito de literatura que apresenta pistas instigantes, subterrâneas, para superar o estado de exceção edípico como regra geral.

Nesse contexto, julgamos ser importante antes de tudo apresentar uma teoria consequente sobre o estado de exceção como a regra. Para Giorgio Agamben, a propósito, a categoria do estado de exceção é analisada como uma aporia histórica entre o soberano e a vida nua. Em Homo sacer, a respeito, é possível ler: “[...] o fundamento primeiro do poder político é uma vida absolutamente matável, que se politiza através de sua própria matabilidad.5

A aporia do estado de exceção, com Agamben, teria essa dupla mediação, implicada com a matabilidade da vida nua: 1. Há uma última instância sem fim para a matabilidade da vida nua; 2. Há uma última instância sem fim para a visibilidade do trabalho de liberação da vida nua. Nesse segundo eixo, mas sempre em relação aporética com o primeiro, é que é possível depreender um processo K., estético-político de não matabilidade da vida nua.

O processo e a matabilidade sacer de K, o povo como função vazia

Uma importante hipótese deste artigo advém do argumento de que o romance O processo possa ser analisado como uma trama ficcional das aporias da tradição do oprimido, razão pela qual seja possível nela depreender um conceito de literatura que tenha na matabilidade da vida nua a sua razão de ser no âmbito da não menos aporética instância da superestrutura jurídica e política, principalmente se ampliada para o conjunto do ser social, em última instância. Assim, se se dilata Édipo, revela-se como funciona o processo de edipianização da regra geral do estado de exceção na tradição do oprimido.

Para levar adiante esse argumento, supomos ser necessário nos referendar em duas leituras críticas de O processo. A primeira é a de Michael Löwy, tendo em vista o seguinte fragmento de seu ensaio “De Mendel Beiliss, o judeu pária, a Joseph K., a vítima universal. Uma interpretação de O processo de Kafka”, que assim se expressa: “Em O processo, o herói, Joseph K., não tem nacionalidade nem religião determinadas: a escolha de uma simples inicial no lugar do nome do personagem reitera sua identidade universal: ele é o representante por excelência das vítimas da máquina legal do Esta”.6

A segunda leitura crítica, por seu turno, é mais uma vez de Kafka: por uma literatura menor , tendo em vista o seguinte fragmento: “A letra K já não designa um narrador nem uma personagem, mas um agenciamento muito mais maquínico, um agente muito mais coletivo porque um indivíduo se lhe encontra ligado na sua solid”.7

Tendo em vista as duas citações acima, evidenciamos: a letra K., cifra do protagonista do romance, pode ser interpretada como o signo de uma identidade universal, que não se reduz à individualidade de um nome próprio, podendo ser qualquer um. A letra K é um agente coletivo, a saber: a vida nua que se politiza por meio de sua matabilidade.

Nesse sentido, para analisar o romance O processo como narrativa que desenvolve um conceito de literatura sobre e da tradição do oprimido, considere-se, inicialmente, um duplo vetor aporético, qual seja: 1. Por meio dele, o estado de exceção como regra é narrado representando K. como o “fundamento primeiro” de um conceito de literatura que diz respeito às aporias da última instância da milenar tradição do oprimido, na qual K, o povo, faz-se como agente insciente do estado de exceção contra si mesmo; 2. Somente, K, o povo, politizando a sua matabilidade, pode desenvolver as aporias das últimas instâncias de sua emancipação, abolindo em processo o estado de exceção contra si mesmo.

O primeiro vetor é, pois, de K. contra si mesmo, porque insciente, razão pela qual seja possível interpretar que nesse caso haja um processo de aporias de dilatação edípica da milenar tradição do oprimido, que é metafísico nos seguintes termos, em diálogo com A partilha do sensível , de Jacques Rancière: “Há um tipo de seres, as imagens, que é objeto de uma dupla questão: quanto à sua origem e por conseguinte ao seu teor de verdade; e quanto ao seu destino; os usos que tem e os efeitos que induzem. Pertencem a esse regime a questão das imagens da divindade, do direito e a proibição de produzir tais image”.8

O processo de edipianização do primeiro vetor aporético de base da tradição do oprimido dá-se pela relação entre soberano e vida nua (ou do soberano e K, o povo). É um vetor edípico porque replica o soberano como imagem divina, formando uma tradição histórica redundante: de soberano para soberano, excluindo K, o povo, ao mesmo tempo em que transforma sua identidade coletiva em referência a ser sacrificada.

A esse respeito, da insciência de K. e a relação desta com a edipianização soberana do mapa-múndi, o trecho abaixo do romance O processo é exemplar. Diz respeito ao capítulo VII da narrativa, intitulado “O advogado, o industrial e o pintor”. Sempre buscando a última instância do processo de exceção que foi instituído contra K., este conversa com o pintor, que interage da seguinte maneira:

— O senhor é inocente? — perguntou.

— Sim — disse K.

A resposta a essa pergunta causou-lhe real alegria, principalmente porque ela ocorria diante de um particular, ou seja, sem qualquer responsabilidade. Ninguém ainda o tinha indagado tão abertamente. Para saborear essa alegria ainda acrescentou:

— Sou completamente inocente.

— Ah, bom. Disse o pintor e baixou a cabeça como se pensasse. De repente, levantou de novo a cabeça e disse: — Se o senhor é inocente, então o caso é muito simples.

O olhar de K. se turvou, aquele suposto homem de confiança falava como uma criança inscien.9

O primeiro vetor aporético do estado de exceção, na relação entre soberano e vida nua, supõe de antemão a inocência desta; e tanto mais inocente quanto mais aporeticamente sacrificável. É nesse contexto que o pintor Titorelli, descrito como pintor de juízes, representa a estética do estado de exceção, porque sua arte se faz como destino de uma origem: o tribunal, os juízes.

A aporia, essa indecidibilidade entre opostos, do primeiro vetor de base do estado de exceção, advém da relação entre inocência e culpabilidade e o efeito dessa aporia é a produção de uma arte insciente; de inocência culpada. Ora, se K. é inocente, ele é culpado. É nesse sentido que há nesse primeiro vetor aporético do estado de exceção uma lógica edípica ampliada, pois nele K, o povo, replica o soberano (o pai) como destino de si, seja na arte, seja na vida, dilatando edipianamente a tradição do oprimido; e a história como metafísica.

No entanto, para que o processo inscreva-se como indefinida última instância, é preciso que K. apresente-se como um signo vazio a ser preenchido pelo processo histórico (em última instância) metafísico de sua matabilidade, sem origem e sem destino. Bem entendido, K., essa identidade coletiva, como signo vazio, faz-se como função vazia da tradição do oprimido, argumento que pode ser melhor desenvolvido tendo em vista o trecho abaixo da narrativa, no qual um sacerdote relata a K. a fábula do porteiro e do camponês:

Deve-se admitir que durante muitos anos, de certo modo durante toda uma existência, ele apenas exerceu uma função vazia, pois se diz que chega um homem, ou seja, alguém em idade adulta; que portanto o porteiro precisou esperar por muito tempo antes de cumprir seu objetivo, na verdade por tanto tempo quanto aprouve a esse homem, que veio de fato voluntariamente. Mas também o fim desse serviço é determinado pelo fim da vida do homem; portanto até o fim ele lhe fica subordinado. E sem cessar se salienta que o porteiro parece que não sabia de nada.10

A última instância jurídica de K, o povo, constitui-se como uma função vazia, razão pela qual, como uma aporia metafísica, a última instância de K. se faz também como a primeira instância da origem divina. Entre ambas, há o porteiro, que é uma função vazia em si, em um sentido literal: a tradição do oprimido, por ser histórico-metafísica e circular é em si uma função vazia, marcada por um niilismo passivo, porque simplesmente nada nela pode ocorrer; nada acontece senão a duplicação da origem no destino, não obstante a diversidade do mundo.

É por isso, dialogando com o trecho acima da narrativa, que o porteiro parece não saber de nada, pela singela razão de que não há o que saber, pois, para dialogar mais uma vez com Walter Benjamin, o tempo histórico da tradição do oprimido faz-se de modo “homogêneo e vazio”11 precisamente porque bloqueia o devir histórico.

Com muita sagacidade, Kafka conseguiu descrever a dinâmica da função vazia K., que é vazia como função porteiro de sua própria função vazia: o portal da lei soberana do estado de exceção como regra é, antes de tudo, tempo homogêneo e vazio, por isso está sempre aberto porque na paisagem de seu interior nada ocorre senão a circularidade metafísica sem fim da tradição do oprimido.

Não será circunstancial, sob esse ponto de vista, que o porteiro K., da função vazia do portal da lei, é aquele que produz a fábula da aporia inocente/culpado, porque insciente. A inocência, nesse contexto insciente, constitui-se como primeira, segunda, terceira instâncias, etc. indefinidas, no tempo homogêneo e vazio da tradição do oprimido, razão pela qual é também um vazio niilista, culpado, igualmente na primeira, segunda, terceira instâncias; indefinidamente culpadas.

As aporias democráticas de K. sem origem e sem destino e o regime estético da arte

As aporias do estado de exceção supõem uma estética histórico-metafísica baseada na circularidade da história, cujo fim é o seu começo, a instaurar um tempo homogêneo e vazio. É a arte insciente de Titorelli, o pintor de juízes. Este pode ser interpretado também como o pintor do portal da lei; da fábula da tradição do oprimido como a regra da relação consagrada do elo entre a origem e o destino soberanos.

No entanto, isso não é tudo, pois, em diálogo com o segundo vetor acima assinalado, quando K. politiza a sua matabilidade, o tempo homogêneo e vazio da tradição do oprimido passa a ser substituído pela função vazia K., o povo, sem origem e sem destino, situação que rompe com a tradição metafísica e instiga outra forma de produção estética, assim analisada pelo filósofo francês Jacques Rancière:

No regime estético das artes, as coisas da arte são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível. Esse sensível, subtraído de suas conexões ordinárias, é habitado por uma potência heterogênea, a potência de um pensamento que tornou ele próprio estranho a si mesmo; produto idêntico ao não produto; saber transformado em não-saber; logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional, etc...12

Para os argumentos deste artigo, o que significa estar “subtraído de suas conexões ordinárias”? Significa estar subtraído das conexões ordinárias da tradição do oprimido, com sua temporalidade homogênea e vazia; daí ordinárias, no duplo sentido do termo. Se o regime estético da arte pressupõe uma arte sem origem e sem destino, traduzimos esse regime, aqui, como o regime em que K, o povo afirma a sua função vazia sem permitir que esta seja capturada pela relação fabular origem e destino soberanos.

O efeito dessa função vazia, em si sem origem e sem destino, da letra K., como logos idêntico a um pathos, é a escrita em arte de uma narrativa que deixa de ser a fábula do portal da lei, porque se torna um produto que é seu não produto; uma arte de territorialidades instáveis, como de resto, em outro contexto, salientou Luiz Costa Lima: “O desaparecimento em Kafka, de territorialidades estáveis torna o que parecia firme parte de um jogo caótico cujas regras ou inexistem ou se desconhecem. [...]Mas não esqueçamos que essa desregulagem funciona apenas para o quixote peculiar que é Joseph K”.13

Ao destacar que a desregulagem da linguagem em O processo — engendrando um produto que é seu não produto — funciona apenas para Joseph K., pensamos que nesse caso Costa Lima não tenha sido consequente em seus instigantes argumentos iniciais porque parece não ter compreendido que K. como o signo vazio na tradição do oprimido jamais pode ser considerado isoladamente, como um peculiar Quixote, posto que, como identidade coletiva, K. tanto pode ser a regra geral do estado de exceção, como a sua desregra igualmente geral.

Para nós, O processo pode ser lido como uma narrativa sobre o processo que foi instaurado contra K. e, portanto, narrativa de exceção que tem como tema principal a matabilidade sacer da vida nua, que é não apenas a de K., mas a de sua dimensão coletiva, considerando a fábula homogênea e vazia da totalidade do ser social da tradição do oprimido. Talvez não seja casual, a propósito, que o livro termine com a execução de K., momento da última instância de f-ato, in extremis, como é possível evidenciar no fragmento a seguir:

Mas na garganta de K. colocavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto o outro cravava a faca profundamente no seu coração e a virava duas vezes. Com olhos que se apagava, K. ainda viu os senhores perto de seu rosto, apoiados um no outro, as faces coladas, observando o momento da decisão.

— Como um cão — disse K.

— Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.14

Confirma-se assim a matabilidade da vida nua e a continuidade, em última instância, da tradição do oprimido, nas últimas palavras do romance sobre uma vergonha perene e impessoal. Ora, se a narrativa inicia com K. sendo caluniado por alguém indefinido, como uma fábula do estado de exceção; ela termina com a execução de K. por um alguém qualquer: um amigo, uma pessoa de bem, alguém que quisesse ajudar, pois, afinal, a regra geral da tradição do oprimido, na totalidade de seu ser social, impõe um familismo como regra geral, mesmo entre os opostos, como o da relação entre soberano e vida nua; um familismo, bem-entendido, edípico, de proliferação homogênea e vazia da edipianização entre opressores e oprimidos.

No entanto, se o que está em jogo, em O processo, é o mapa-múndi edípico, o efeito de sua recepção, ao invés de trágico, pode ser cômico, argumento que converge com a observação de Max Brod, amigo e biógrafo de Kafka, ao destacar o quanto o autor checo ria ao recitar a obra para amigos, como é possível observar no seguinte fragmento de Kafka, título de sua bibliografia:

Quando era o próprio Kafka quem recitava, destacava-se com nitidez, especialmente, este humor. Assim, por exemplo, nós, os amigos, perdemo-nos de riso quando ele nos leu o primeiro capítulo de O processo. E ele mesmo riu tanto que, durante momentos, não conseguiu continuar a leitura. Bastante surpreendente, se pensarmos na seriedade terrível deste capítulo. Mas foi isso mesmo [...].15

Ao estabelecerem uma interlocução com o trecho supra, Deleuze e Guattari distinguiram dois níveis no romance O processo: o da enunciação , que seria sempre social, histórico e político; e o do enunciado, que diz respeito ao campo da escrita, razão pela qual, a respeito, argumentaram: “Nunca houve autor tão cômico e alegre do ponto de vista do enunciado”.16

Há, em O processo, no plano de enunciação, uma dicção séria, de soberano para soberano, no âmbito da história da tradição do oprimido. No entanto, sob o ponto de vista do enunciado, que é o da literatura, emerge a comicidade. Esta ocorre sempre que K., o povo, toma a cena, destituindo a seriedade.

É a partir daí que emerge o fator cômico no plano do enunciado, em O processo ; tendo em vista o povo. É sempre o povo que aparece do começo ao fim da narrativa, tornando cômica, com sua presença-povo, sem origem e sem destino, a seriedade mortal da tradição do oprimido, no plano da enunciação narrativa.

No livro A sociedade do controle integrado,17 de Luis Eustáquio Soares, essa função vazia de K. o povo, em sua potência cômica, é analisada tendo em vista duas perspectivas: a dos efeitos de fora e de dentro do povo, presentes na produção literária de Kafka. Ambos os efeitos, ocorrem ao nível do enunciado e parodicamente destituem e enunciação séria soberana da tradição do oprimido, ao rasurá-la, de forma cômica, presença não transcendental de K, o povo.

A propósito, vejamos o seguinte fragmento da mesma obra teórica, versando sobre o zoom que Kafka faz do estado de exceção, ora ampliando-o, ora reduzindo-o:

[...] num jogo em que tanto a ampliação quanto a redução do zoom são desmistificadoras: a ampliação porque mostra que o tribunal está fora, no mais comezinho cotidiano, e que os efeitos de dentro são o que são, efeitos, estratégias de transcendência; e a redução porque borra os transcendentais espaços de dentro, como o dentro arte autônoma, com o mais trivial cotidiano, produzindo, desse modo, o que poderíamos chamar, em diálogo com Kafka: para uma literatura menor, de trivial engordado.18

Esse “trivial engordado” de que fala o trecho acima o interpretamos aqui como procedimento de desedipianização ao nível do enunciado, levado a cabo com a presença trivial, não transcendental, de K. o povo, seja como efeito de fora, o povo fora da tela do tempo homogêneo e vazio; seja como efeito de dentro, o povo sem origem e sem destino, rasurando o tempo homogêneo e vazio.

No que diz respeito aos dois procedimentos, a passagem da narrativa em que K. se encontrara com uma menina corcunda (ou esta o encontra, tanto faz), aproveitando para perguntar-lhe sobre o endereço do ateliê do pintor Titorelli, é singular. Acompanhemos:

— Aqui mora um pintor chamado Titorelli?

A menina, que não tinha nem treze anos e era um pouco corcunda, deu-lhe um golpe com o cotovelo e olhou-o de viés. Nem sua juventude nem o defeito físico tinham conseguido impedir que ela já estivesse completamente corrompida. Não sorriu nem uma vez, mas fitou K. seriamente, com um olhar penetrante e desafiador. K. fez que não havia notado o comportamento dela e perguntou:

— Você conhece o pintor Titorelli?

Ela assentiu com a cabeça e por sua vez perguntou:

— O que o senhor quer dele?

A K. pareceu útil se informar mais um pouco, rapidamente, sobre Titorelli:

— Quero que ele pinte o meu retrato — disse.19

A aporia do conceito de literatura de Kafka realiza-se, em potência, no momento em que K. diz querer que Titorelli pinte o seu retrato. Pintar o retrato de K., significa, para o nosso entendimento, realizar uma arte insciente, mimética, por supor uma origem, K., e um destino; a sua imagem reproduzida. É a arte do tempo homogêneo e vazio. Ora, K, o povo, quando sem origem, porque sem soberano, não é (re)apresentável mimeticamente. A personagem “a menina”, esse outro K., não teve outra alternativa, a saber:

— Pintar o seu retrato? — perguntou ela, abrindo desmesuradamente a boca, e bateu de leve com a mão em K., como se ele tivesse dito algo extraordinariamente inesperado ou sem jeito, levantou com as duas mãos a saia no entanto muito curta e correu, o mais depressa que podia, atrás das outras meninas, cujos gritos já se perdiam indistintamente no alto.20

Partimos do pressuposto de que o fragmento supracitado de O processo seja exemplar para ilustrar tanto os efeitos de dentro e de fora ao estado de exceção da tradição do oprimido porque de K. para K., isto é, de K. para a menina corcunda, é o fora K. e o fora menina corcunda que se encontram e, ao fazê-lo, transformam-se em enunciado cômico do tempo homogêneo e vazio; da pintura de K. a ser realizada por um pintor insciente, como Titorelli — um pintor de juízes e, portanto, impróprio para pintar K.

Por outro lado, no que diz respeito aos populares e carnavalescos efeitos de dentro, compreendidos como rasuras-povo na insciente arte da tradição do oprimido, a primeira frase do trecho supra, sob a forma de uma pergunta, diz-se por si mesma, sobretudo considerando o advérbio de lugar que a inicia: “Aqui mora um pintor chamado Titorelli?”. Aqui, onde? Nossa hipótese, a respeito, é a seguinte: aqui, porque afinal o tribunal, sendo a regra, está em todos os lugares, de modo que o efeito — povo — de dentro que o rasura se dá em ato contínuo, como um work in progress.

E há mais com relação ao advérbio aqui: funciona como uma heterotopia indecidível entre o dentro e o fora; o dentro do tribunal, do portal da lei, da tradição do oprimido; e a função vazia K, como aporia do enunciado cômico vis-à-vis ao polo da enunciação histórica e social do estado de exceção como a regra. É por isso que talvez pudéssemos dizer que o advérbio de lugar “aqui” possa ser interpretado como uma aporia de lugar no romance de Kafka.

Como uma aporia implica necessariamente uma relação entre dois termos, o “aqui” do trecho citado evocaria uma pergunta relacional: “aqui, onde?” No tempo homogêneo e vazio da tradição do oprimido ou nos seus efeitos de dentro e de fora em K., o povo? No soberano ou na vida nua?

“Aqui”; aporia de dois lugares antinômicos, de duas instâncias, a da metafísica da tradição do oprimido e da história sem origem e sem destino; “aqui” seria, como hipótese, uma aporia singular: uma aporia cômica que, a rigor, visualizaria as duas instâncias últimas em jogo no romance O processo, a da enunciação história, política, social do estado de exceção como a regra; e a do enunciado da comicidade imanente, que se diz, “aqui”; e assim (onde?) não apenas sugere que a tradição do oprimido é onipresente, mas também que K., povo, também o é.

Por outro lado, como dêitico topológico que indica o lugar, ao mesmo tempo do enunciado, da escrita; e da enunciação, “aqui” supõe outro dêitico: o de tempo; e mais precisamente o advérbio de lugar, agora. Temos, portanto, “aqui, onde, agora”. Isto é, em qualquer lugar é aqui e agora, hic et nunc , como índice da igualdade de tudo com tudo e também como forma de destituir a seriedade da tradição do oprimido, ao destronar a sua dimensão transcendental e restaurando o materialismo histórico de uma temporalidade que deixa de ser homogênea e vazia.

As ontologias do ser social em K, o povo e a última instância da aporia naturalismo e realismo

Atentemos para o início da narrativa de O processo, que assim começa: “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”.21

Esse indefinido pronome “alguém” o interpretamos como uma instância (a primeira, a segunda, a terceira pessoa...) de lugar e de tempo: alguém-aqui e alguém agora caluniou Joseph K. Se a arte, em seu regime estético, em conformidade com Rancière, visibiliza o trabalho comum, cabe-nos como tarefa analisar o ser social que o advérbio de lugar aqui demarca e instiga-nos a ver, em última instância, a saber: a própria obra O processo; este “aqui” das aporias da tradição do oprimido e este “aqui” das aporias da função vazia K., quando potência do heterogêneo — signo de uma estética da igualdade de tudo com tudo; democrática.

Mas o que é isto, estética democrática? O diálogo que fazemos continua sendo com Jacques Rancière de A partilha do sensível, no qual a democracia é definida como um regime político sem origem e sem destino e que assim pressupõe uma estética, o regime estético da arte, indiscernível ao regime democrático e, assim, da história sem metafísica, aberta ao rompimento das conexões ordinárias do estado de exceção da tradição do oprimido.

Ora, se K. como função vazia ocupa um duplo lugar, “aqui”, a depender da forma como definimos o vazio, se vazio da tradição do oprimido, que é o vazio do tempo (e espaço) homogêneo; ou se o vazio da estética/política democrática, que é o vazio da potência heterogênea da visibilidade do trabalho comum, então, como vimos, é o “aqui” a última instância aporética entre dois mundos, duas estéticas, duas formas de compreender a ontologia do ser social.22

Se considerarmos a relação entre a enunciação da tradição do oprimido e o enunciado do regime estético das artes, seria possível dizer que a potência aporética do “aqui” em O processoadvenha do fato de ser ele mesmo um intervalo entre duas formas de totalidades ontológicas do ser social, a saber: a democrática e a de exceção, sendo que o efeito desse intervalo seria a comicidade posta no campo da recepção — do leitor da narrativa: Kafka como leitor da função vazia K, em seu duplo ”aqui” aporético.

Para nós, essa precedência de um “aqui” de infraestrutura, o enunciado, isto é, o romance O processo, tem a ver não apenas com o trabalho socialmente necessário de sua produção, mas também com a mônada deste trabalho, sob o ponto de vista de um materialismo histórico, argumento que possibilita o diálogo sempre produtivo com Walter Benjamin: “O materialismo histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimid”.23

Nesse sentido, insistimos, o advérbio “aqui” é não apenas o processo “aqui”, isto é, o romance desse processo contra K., o povo; mas também o desprocesso K. do povo contra si mesmo, razão pela qual: 1. Só existe enquanto obra singular porque se faz como ficção sobre o estado de exceção como regra para extrair dele a mônada; 2. a mônada “aqui” funciona como um dêitico que aponta para a infraestrutura da totalidade ontológica do ser social; 3. essa mônada “aqui”, com seus efeitos de fora e de dentro ao estado de exceção, ocupa uma lugar intervalar entre uma identidade e outra; 4. tal identidade e outra também podem ser analisadas como princípio relacional da identidade da ontologia do ser social do estado de exceção como a regra, assim como da ontologia do ser social democrático, sem origem e sem destino; 6. o “aqui” é uma mônada no sentido de que uma mônada traz em si, em sua microestrutura, o cosmos inteiro; 7. como mônada intervalar da ontologia do ser social o que está em jogo ao fim e a o cabo não é a consciência individual ou mesmo a superestrutura, concebida de forma reificada. Isso porque, para dialogar com Karl Marx de Contribuição à critica da economia política: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”24; seja porque, enfim, “aqui”, em resumo, é a mônada da consciência social.

Voltemos à fabula do porteiro da lei, que “[...] durante muitos anos, de certo modo durante toda uma existência, ele apenas exerceu uma função vazia [...]25”. Supomos ser possível dizer que a existência do porteiro seja o “aqui” dêitico em relação à totalidade do ser social da tradição do oprimido: uma ontologia homogênea e vazia. E talvez não seja circunstancial que a citação supra se suplemente assim “[...] pois se diz que chega um homem, ou seja, alguém em idade adulta; que, portanto o porteiro precisou esperar por muito tempo, antes de cumprir seu objetivo, na verdade por tanto tempo quanto aprouve a esse homem, que veio voluntariamente [...]”26. Em nosso entendimento, o homem adulto que chega ao porteiro pode ser compreendido como uma variação do indefinido “alguém”, uma vez que, no tempo homogêneo e vazio do estado de exceção como a regra, tal variação tende a se tornar uma variação do mesmo; por meio da qual um eixo comum se inscreve: alguém, sempre um alguém, calunia a si mesmo; um “aqui-alguém”, como regra geral. Um “aqui-alguém” empirista, no sentido de que, embora possa ser qualquer um, não pode visualizar a totalidade dinâmica do ser social.

Por outro lado, se objetivarmos o desprocesso K (que faz aporia com o processo de exceção descrito no parágrafo imediatamente acima) — o desprocesso de K., a letra da ontologia do ser social sem origem e sem destino —, outra figuração da totalidade do ser social emerge, como é possível visualizar na seguinte passagem do romance:

— Talvez o senhor esteja me entendendo mal — apressou-se K. a observar. — O que eu quero dizer — aqui K. se interrompeu e olhou em volta à procura de uma cadeira. — Posso me sentar, não? — perguntou.

— Não é costume — respondeu o inspetor.

— O que eu quero dizer — disse então K. sem fazer mais pausas — é que, seja como for, estou muito surpreso, mas quando se está há trinta anos no mundo e foi preciso abrir caminho nele sozinho, como é o meu caso, fica-se endurecido diante das surpresas e elas acabam não sendo levadas tão a sério. Especialmente a de hoje, não.

— Por que não especialmente a de hoje?

— Não estou querendo dizer que considero tudo uma brincadeira, para tanto os preparativos que foram feitos me parecem abrangentes demais. Teriam de participar dela todos os integrantes da pensão, os senhores todos também, e isso iria além dos limites de uma brincadeira. Portanto, não quero dizer que seja uma brincadeira.27

Se suplementarmos as duas últimas citações do romance apresentadas, perceberemos um traço de semelhança curiosa entre ambas. Na primeira, é possível destacar o “adulto” que voluntariamente chega até o porteiro da lei; na segunda K., ao estabelecer uma interlocução com o inspetor que veio para detê-lo, anuncia-se como um homem adulto (com seus “trinta anos de existência”). No entanto, mais que a semelhança, é a diferença que se destaca, precisamente no uso do advérbio de lugar, aqui: “— O que eu quero dizer —, aqui K. se interrompeu e olhou em volta em busca de uma cadeira [...]”.

O uso, novamente, do advérbio de lugar “aqui” não poderia ser interpretado como o princípio realista do romance O processo? Para responder a essa pergunta, seria importante primeiro definir o realismo, o que fazemos com o apoio de Lukács, tendo em vista o seu ensaio “Arte e verdade objetiva”, principalmente o fragmento abaixo:

Assim, pois, a obra de arte há de refletir em conexão justa e justamente proporcionada todas as determinações objetivas essenciais que delimitam a porção de vida por ela plasmada. Há de refleti-las de tal modo, que a dita porção de vida resulte compreensível e suscetível de se experimentar em si e a partir de si, que apareça qual uma totalidade da vida [...] A totalidade da obra de arte é, antes bem, uma totalidade intensiva: é a coerência completa e unitária daquelas determinações que revestem importância decisiva — objetivamente — para a porção de vida que se plasma, que determinam sua existência e seu movimento, sua qualidade específica e sua posição no conjunto do processo da vida.28

O realismo, com Lukács, seria a estética da totalidade intensiva da vida, só possível se a obra de arte consegue plasmar as determinações objetivas, essenciais, do conjunto do processo vital, interconectando-as tendo em vista a totalidade do ser social. A arte realista, nesse contexto, não prescinde da verdade objetiva e esta por sua vez não é possível sem a precedência da perspectiva ontológica em relação à epistemológica e sem um distanciamento necessário para a apreensão e figuração de sua própria totalidade, coextensiva à totalidade da ontologia do ser social, pois a plasma a partir de um caso particular, como o caso de K. caluniado e detido por um indefinido alguém.

Ora, se votarmos o olhar para o trecho de O processo em questão, observaremos que o uso do advérbio “aqui” — precedendo uma dupla interrupção, a do narrador que interrompe K. e deste que se interrompe para se situar, “aqui” — faz-se de tal maneira em que ao mesmo tempo K. e o narrador possam observar o entorno: a totalidade intensiva da vida da pensão.

A partir de um olhar distanciado e, assim, objetivo em relação à cena em si, K., no diálogo que trava com o inspetor, realiza mais uma nova aporia tendo como base a relação entre brincadeira e realidade; aporia que se inscreve no jogo de contrários entre duas totalidades intensivas: a totalidade de um teatro suposto — a acusação do inspetor seria uma brincadeira; uma encenação; e a totalidade concreta da vida; do ser social objetivo, um alguém que o caluniou de tal modo que é realidade que ele está detido.

Em relação à primeira totalidade — a da vida como uma encenação — K. diz que não seria possível que sua detenção fosse uma brincadeira porque se o fosse toda a pensão deveria assistir a encenação — da brincadeira — de prendê-lo, o que não estava ocorrendo. Isso supostamente seria um indício de que sua detenção era, portanto, realidade — e não uma ficção. Antes, porém, K. argumenta: “Não estou querendo dizer que considero tudo uma brincadeira, para tanto os preparativos que foram feitos me parecem abrangentes demais”.

De nossa parte, vamos nos ater especialmente ao seguinte trecho: “Não estou querendo dizer que considero tudo uma brincadeira”. Ora, se tudo não é uma brincadeira, alguma coisa há de ser. Nossa hipótese a respeito é a de que há uma aporia entre brincadeira e realidade, no fragmento que ora analisamos e essa aporia põe em interface a totalidade do ser social em relação à da obra, compreendida como plasmação da totalidade intensiva da tradição do oprimido.

Se, no entanto, a marca da aporia é a contradição, tendo em vista o jogo de sentidos entre termos antinômicos, é curioso notar o seguinte: 1. a detenção de K. não é uma brincadeira porque se o fosse exigiria que toda a pensão participasse dela; 2. a detenção de K. não é uma brincadeira porque os preparativos para detê-lo “parecem abrangentes demais”. Ora, se menos vezes menos é mais, em termos matemáticos, talvez com essas duas negativas contraditórias e convergentes pudéssemos dizer: a detenção é uma brincadeira.

De qualquer forma, considerando a totalidade intensiva da plasmação das conexões de uma singularidade, com a realidade objetiva do ser social, nossa hipótese é a de que O processo possa ser lido como um romance que: 1. encena a totalidade do ser social da tradição do oprimido; 2. sabe objetivamente que a obra é uma encenação; 3. por causa disso todo o enunciado — a sua escrita — é cômico precisamente porque se configura como uma brincadeira que se sabe não ser; 4. no entanto, não é uma brincadeira porque o que se encena é a totalidade do ser social da tradição do oprimido, no nível da enunciação.

Para nós, a realização da aporia brincadeira/realidade pode ser estendida a toda a obra. Esta seria estruturalmente um jogo cômico e especular, no plano do enunciado, ao transformar este em objeto de encenação naturalista da tradição do oprimido. Chegamos, aqui, à última instância aporética da narrativa: realismo e naturalismo. Para tratar dessa aporia, há que se definir o naturalismo e o faremos novamente em diálogo com Lukács. Por exemplo, em Marx e Engels como historiadores da literatura, o teórico húngaro definiu o naturalismo como uma estética decadente por apresentar uma “[...] atitude burocrática em face do conteúdo [...]”.29 Já em “Se trata do realismo”, destacou, por sua vez, que o naturalismo é “[...] em parte um pseudorrealism”.30

Perguntaríamos, a respeito: Por que o naturalismo seria uma estética burocrática em face do conteúdo? O que é um conteúdo? Por que seria um pseudorrealismo? Há algo de realista no conteúdo? Sempre em diálogo com Lukács: o naturalismo seria um pseudorrealismo porque se baseia na representação das mais diferentes situações da vida social do povo, tendo em vista o imediato-vivido delas e nelas, na pressuposição de que a realidade é uma realidade em si, sem conectá-la ao processo histórico que a tornou possível, como geralmente está desafiado a fazer a estética realista — conexões históricas objetivas como processo a partir do qual a forma-povo emerge como totalidade intensiva.

Por exemplo, em “Tribuno do povo ou o burocrata?”,31 Lukács argumentou que o realismo implica uma relação plasmada com o tribuno do povo. Seria, pois, uma estética que apresenta o povo em seu trabalho de emancipação, em perspectiva histórica e ascendente. É, pois, a forma estética, o realismo, em que a coletividade ou a totalidade do ser social põe em destaque a potência ascendente do trabalho comum.

Por sua vez, o naturalismo, como uma forma-povo burocrática, figura a realidade social do povo como patológica, pois se baseia na seguinte apologética do mundo existente: o que se vê é tudo o que é, abolindo, assim, a perspectiva histórica, ao mesmo tempo em que reifica a relação entre realidade e violência cotidiana, tendo em vista seu enquadramento no plano do imediato-vivido.

Com essa digressão, queremos dizer que aporia realismo/naturalismo em O processo se dá a partir da encenação naturalista do estado de exceção, tendo em vista uma figuração realista, no plano do enunciado. O processo naturalista contra K. o povo, seria, nesse sentido, antes de tudo contra o seu estado de exceção, concebido não como regra geral da tradição do oprimido, mas como regra particular, reificada, abolindo, dessa forma, a existência da história da tradição do oprimido e condenando ao imediato-vivido a matabilidade da vida nua contra si mesma, sem relacioná-la com o soberano e sua imposição de uma história metafísica, circular, que exclui a vida nua, incluindo-a na exceção, como regra geral.

Sob o ponto de vista realista, no entanto, o romance põe em perspectiva a vida de K., esse signo vazio, plasmada como uma totalidade intensiva que não apenas figura o estado de exceção como regra geral, mas também e antes de tudo porque apresenta este como o efeito deletério de uma enunciação metafísica histórica, social e política de largo alcance histórico.

É por isso que o trecho do diálogo de K. com o inspetor torna-se bastante sugestivo e o é porque o que abole a brincadeira, sendo sempre a totalidade social, é também o que a instaura: a sua particularidade do imediato-vivido de K. sendo detido. Por outro lado, sua detenção só é uma brincadeira se for concebida como uma enunciação metafísica, pois fora desta torna-se inevitavelmente um “aqui” como histórica regra geral da tradição do oprimido.

O conceito de literatura de Kafka, assim, advém de um realismo sui generis; o que encena o naturalismo como regra específica burocrática e decadente da tradição do oprimido. Por meio desse procedimento realista, comicamente, narra a comédia dos erros da reificação da matabilidade da vida nua, quando representada decadentemente como apologética da realidade que se dá a ver fora de seu materialismo histórico.

Há, nesse sentido, arte decadente quando esta não afirma o processo histórico, como abertura no vazio, sem origem e sem destino, da totalidade ontológica do ser social, adaptando-se à apologética do mundo existente. No ensaio “Max e o problema da decadência ideológica”,32 Lukács relaciona a decadência estética a períodos históricos não revolucionários, tendo em vista, sobretudo, o momento em que a burguesia assenta-se no poder, assenhorando-se, como soberana, da tradição do oprimido capitalista e também e antes de tudo da fase histórica imperialista, quando diferentes burguesias nacionais da Europa passaram a disputar a civilização burguesa em escala planetária.

No entanto, para usar o método de Deleuze e Guattari, em Kafka: por uma literatura menor , achamos por bem ampliar mais ainda o zoom histórico, uma vez que antes da fase imperialista do capitalismo ou mesmo antes do capitalismo; ou mesmo antes da modernidade, as civilizações precedentes se enquadraram nos limites da trans-história da tradição do oprimido.

Sob esse ponto de vista, ecoando ainda os argumentos de A sociedade do controle integrado , o naturalismo, embora interpretado dentro do mesmo campo semântico aqui analisado, assume uma dimensão diretamente implicada com o plano da imanência da tradição do oprimido. Para Soares, a trans-história da tradição do oprimido se estruturaria pela relação aporética entre transcendência e imanência, tal que o primeiro termo seria ocupado pelo soberano, como origem de uma imagem divina; e o segundo pela vida nua, sem origem e sem destino.

O plano de imanência da trans-história da tradição do oprimido estaria na condição histórico-social trágica, nesse contexto, do sacrifício, da calúnia, do aviltamento; exposto permanentemente à sua matabilidade, para que o soberano concentre para si o plano de transcendência, tornando-se a própria enunciação metafísica da história, da política e da sociedade.

Haveria, assim, uma espécie paradoxal de “mais-valor transcendental”, concentrado pelo soberano a partir do culto da morte da imanência, indiscernível ao rito transcendental do soberano. Em termos de representação, o efeito disto seria: formalismo e idealismo (de dicção épica e/ou lírica), para a figuração da imagem histórica do soberano; e naturalismo cômico para a representação da vida nua.

Esse seria o motivo pelo qual o romance O processo tenha começado com a detenção de K., caluniado por um indefinido alguém. Isso porque sua detenção, sendo a premissa aporética da trans-história da tradição do oprimido, configurar-se-ia como o princípio, assim como o precipício, do estado de exceção como regra geral.

Nesse contexto, se nos ativermos aos argumentos deste artigo, o realismo de encenação naturalista, compreendido como o conceito de literatura, em O processo , ao narrar comicamente a matabilidade da tradição do oprimido em seu conjunto, como totalidade edípica do ser social de exceção, objetivaria o sacrifício não mais da vida nua, isoladamente considerada, mas do sistema aporético de exceção da trans-história da tradição do oprimido, que envolve soberano e vida nua.

Em última instância…

Considerando que O processo fora escrito durante o período da Primeira Guerra Mundial, pensamos que não seria incorreto afirmar que seu realismo de encenação naturalista do conjunto da tradição do oprimido possa ser analisado também como a ficção realista da apologética do mundo existente, não apenas do período de decadência da civilização burguesa — incluindo o imperialista — mas também da relação aporética soberano/vida nua, o que engendraria como efeito performático — cômico — a exposição nua e naturalista do rei (o soberano), invertendo assim os termos da aporia: soberano, formalismo, idealismo, transcendência, seriedade versus vida nua, naturalismo, sacrifício, matabilidade, comicidade. Nesse caso, teríamos: K., o povo, sem origem e sem destino, narrado de forma realista e, portanto, como potência do heterogêneo, no plano do enunciado — da escrita, da imanência —, encenando-se como personagem da enunciação metafísica histórica, social e política da tradição do oprimido, comicamente, de forma naturalista, no plano da enunciação.

Esse argumento nos parece tanto mais objetivo quanto mais responde a um problema que não foi mencionado neste artigo, qual seja: por que K., um procurador de um banco, seria a representação naturalista da vida nua, se não detém, pela profissão que exerce, o perfil de um operário — a vida nua, por excelência, da civilização burguesa? Talvez porque a vida nua seja toda a história da tradição do oprimido; uma naturalista comédia dos erros da humanidade capturada e apequenada pelos limites de uma trans-história circular, que nos empareda na aporia tragicômica da relação entre soberano — origem e destino divinos — e vida nua, sem origem e por isso mesmo predestinada a ser caluniada, detida e sacrificada, como de resto ocorre com K. no inconcluso (não por acaso) final (cômico?) do romance.

Notas

  1. Louis Althusser. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (Lisboa: Martins Fontes, 1977), 83-84.
  2. Franz Kafka. O Processo (Rio de Janeiro: Globo, 2003).
  3. Walter Benjamin, “Sobre o conceito da história”, em Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, (São Paulo:Brasiliense, 1994), 226.
  4. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Kafka: por uma literatura menor (Lisboa: Assírio e Alvim, 2002), 29.
  5. Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte: UFMG, 2002), 96.
  6. Michael Löwy, “De Mendel Beiliss, o judeu pária, a Joseph K., a vítima universal: uma interpretação de O processo de Kafka”, em Literatura e Sociedade, (São Paulo: USP, 2006), 222.
  7. Deleuze e Guattari, Kafka, 41.
  8. Jacques Rancière, A partilha do sensível: estética e política (São Paulo: Editora 34, 2009), 28.
  9. Kafka, O Processo, 139.
  10. Ibid, 203.
  11. Benjamin, “Sobre o conceito da história”, 231.
  12. Rancière, A partilha..., 32.
  13. Luiz Costa Lima, Limites da voz: Kafka (Rio de Janeiro: Rocco, 1993), 182.
  14. Kafka, O Processo, 211.
  15. Max Brod, Kafka (Madrid: Alianza, 1974), 162.
  16. Deleuze e Guattari, Kafka, 79.
  17. Luis Eustáquio Soares, A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa (Vitória: Edufes, 2014).
  18. Soares, A sociedade..., 71-72.
  19. Kafka, O Processo, 132.
  20. Ibid, 132.
  21. Ibid, 7.
  22. György Lukács, Para uma ontologia do ser social I (São Paulo: Boitempo, 2018).
  23. Benjamin, “Sobre o conceito da história”, 231.
  24. Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política (São Paulo: Expressão Popular, 2008), 47.
  25. Kafka, O Processo, 203.
  26. Ibid, 203.
  27. Ibid, 15-16.
  28. György Lukács, “Arte y verdad objetiva”, Problemas del realismo, (México: Fondo de Cultura Económica, 1966), 27 (tradução nossa).
  29. György Lukács, Marx e Engels como historiadores da literatura (São Paulo: Boitempo, 2016), 198.
  30. György Lukács, “Se trata del realismo”, em Problemas..., 288-318 (tradução nossa).
  31. György Lukács, “Tribuno do povo ou o burocrata”, Ibid, 352-295.
  32. György Lukács, “Marx y el problema de la decadencia ideológica”, Ibid, 55-110.

Bibliografia

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